Existe uma
piada que diz que o melhor negócio do mundo é comprar um argentino pelo que ele
realmente vale e revendê-lo pelo que ele acha que vale. O pano de fundo desta piada é o orgulho
argentino, conhecido em todo mundo. É este mesmo orgulho que está na raiz da
rivalidade entre Brasil e Argentina, algo que transcende o futebol.
Basta
imaginar que até o início dos anos 50 a Argentina era a sexta maior economia do
mundo, com uma população escolarizada, recursos naturais abundantes e uma
indústria pungente que disputava de igual para igual até mesmo em setores de
alta tecnologia, como o automotivo. E não se tratavam de apenas filiais
estrangeiras. A Argentina tinha sua própria marca de automóveis (SIAM), além de
várias outras de eletrodomésticos. A riqueza argentina era tamanha que o país,
em 1920, chegou a ter reservas em ouro superiores ao decadente império
britânico e ao emergente novo império norte-americano. Era praticamente um
“europeu” latino americano. Não por acaso, o país tornou-se o destino preferido
de milhões de refugiados das duas guerras mundiais, inclusive de carrascos
nazistas acolhidos por Perón.
Meio século
depois, a Argentina não passa de mais um problemático país latino-americano,
com as conhecidas mazelas que afligem o continente, como favelas, violência
crescente, inflação galopante, analfabetismo, doenças epidêmicas entre outros.
A decadência da Argentina é tão evidente que o país virou um case
internacional, citado como um caso raro de país que “involuiu” nas últimas
décadas.
Uma rápida
comparação com o Brasil dá uma ideia da decadência dos nossos hermanos. A
economia que até os anos 50 era maior que a nossa, hoje é menor que a economia
do estado de São Paulo. Agora imagine-se na pele de um argentino que viveu este
apogeu, ver o país hoje em mais uma moratória, com uma inflação de 40%,
dependente da economia brasileira e, claro, vendo os “macacos” brasileiros
serem campeões mundiais por cinco vezes!
Mas afinal,
o que causou toda esta decadência? Como a Argentina conseguiu empobrecer
justamente no momento em que tantos países antes miseráveis ascenderam
econômico e socialmente, a ponto de alguns deles integrarem hoje o clube dos
ricos?
A Argentina
é vítima do que Hayek chamou de “caminho da servidão”, um processo lento e
gradual de coletivização, aumento do intervencionismo estatal e polarização da
sociedade em diferentes níveis.
O início de
tal processo tem uma data: 04/06/1946, dia da chegada de Perón ao poder. O
simpatizante de Hitler e Mussolini iniciou uma tradição populista na Argentina
que dura até os dias de hoje. A exemplo de Getúlio Vargas no Brasil, que
instituiu os direitos trabalhistas inspirados na Carta del Lavoro de Mussolini
e se tornou o “pai dos pobres”, Perón dividiu a Argentina entre seus apoiadores
(o bem, o povão, os “trabalhadores”) e seus adversários (o mal, os
“exploradores capitalistas”, a velha “elite colonial” ).
E como
sempre acontece nestes casos, os discursos inflamados dos “pais dos pobres”
conquistaram os eleitores da base da pirâmide. Começou então uma simbiose entre
a nova elite governante trabalhista/socializante, que precisa dos votos da
massa para continuar oferecendo-lhes novas “conquistas”, e a massa, que
descobre o poder do voto e passa a endeusar seus ídolos.
A conquista
da hegemonia da opinião publica passa a moldar também os políticos. Com medo se
colocarem “contra os pobres”, até mesmo políticos da antiga aristocracia
migraram para a base do governo peronista. Aos poucos, a oposição foi
minguando, ao mesmo tempo em que a Argentina transformava-se numa república
sindicalista.
E mais uma
vez, como sempre acontece, no começo tudo é festa. Aumento do salário mínimo
acima da inflação, aumento do crédito, crescimento recorde, nacionalização de
multinacionais, grandes obras, políticas de transferência de renda e tudo o
mais que já nos é bem familiar.
Mas todo
crescimento artificial tem um preço. A fatura vem com o tempo e com ela os
efeitos negativos decorrentes do intervencionismo governamental. Ao final do
primeiro mandato de Perón, a Argentina já dava claros sinais de crise, com as
exportações caindo pela metade, reservas se esvaindo e aproximando a balança
comercial de um déficit histórico, uma vez que até então a Argentina tinha
sempre grandes superávits. Apesar de todos estes sinais, o caudilho conseguiu
mudar a legislação que lhe deu mais cinco anos de mandato.
O segundo
mandato foi ainda pior, abrindo espaço para o primeiro de uma sequencia de
golpes militares só interrompido nos anos 70 com um breve período de
redemocratização onde, mais uma, vez o peronismo voltou ao poder. E como da
primeira vez, em pouco mais de um ano de governo, Perón já multiplicou a
inflação que chegou a 74% em 1974. Dois anos depois, chegaria à casa dos 954%!
Para
completar a tragédia argentina, Perón morreu em pleno mandato, o que o elevou
ainda mais a categoria de mito. Sua terceira mulher, “Isabelita”, assumiu então
o governo e continuou seu projeto populista, afundando ainda mais a economia
argentina.
E como
sempre acontece na América Latina, os militares estão sempre prontos para um
novo golpe. E foi o que aconteceu. Em 1976, começava um dos regimes mais
truculentos da América Latina.
A esta
altura, além de Perón e Evita, a segunda esposa que quase vira santa, a
Argentina já tinha um novo mito para cultuar: Che Guevara. Agora, além dos
adversários peronistas, os desastrados militares argentinos tinham também como
novos inimigos os diversos movimentos de esquerda que se organizavam em toda a
América Latina e que tentavam chegar ao poder pela via armada.
Paralelamente,
a exemplo do que aconteceu no Brasil e em todo mundo, o marxismo cultural
passou a dominar os meios acadêmicos e culturais, avançando gradativamente por
todas as demais áreas estratégicas para a construção da “nova mentalidade”
gramisciana.
No campo
econômico, o segundo período militar argentino herdou a época do choque do
petróleo que culminou com o aumento expressivo dos juros em 1982, os quais
elevaram substancialmente as dívidas dos países do chamado Terceiro Mundo. A nova redemocratização veio em 1983 com Raul
Alfonsín que, a exemplo de Sarney, no Brasil, fracassou redondamente no combate
a inflação.
A nova
esperança surgia na figura populista de um novo peronista, Carlos Menem, em
1989. Os tempos agora eram outros. Não havia mais espaço para novas “conquistas
trabalhistas” como no passado. A grave crise dos anos 90 levou Menem a ser
pragmático, aderindo ao Consenso de Washington, a odiada “cartilha neoliberal”.
Suas raízes
populistas peronistas, no entanto, não lhe permitiram executar bem as dez
recomendações do Consenso de Washington (confira aqui o nosso post que compara
os governos argentino e brasileiro na execução das tais recomendações). Apesar
disso, Menem passou a ser apontado pelos esquerdistas como o maior exemplo de
fracasso das políticas “neoliberais”. Um dos seus principais erros foi
desobedecer à diretriz que recomendava câmbio flutuante. Ao invés disso, ele
dolarizou a economia argentina, instituindo a paridade entre o peso e o dólar.
E como previsto por diversos economistas, ao longo dos anos a situação da
Argentina foi se agravando paulatinamente, a ponto de quebrar duas vezes em um
intervalo de quatro anos.
Em meio a
mais profunda crise da história da Argentina que culminou com mais uma
moratória em 2002, eis que surge um novo salvador da pátria, também peronista:
Néstor Kirchner. E assim como no Brasil, quando Lula assumiu justamente no
início do ciclo de maior crescimento do capitalismo desde o final da II Guerra
Mundial, Kirchner começou a contar com o aumento expressivo das receitas
decorrentes do aumento dos preços dos seus principais produtos de exportação.
E assim
Kirchner surfou na onda da globalização chinesa, esquecendo, no entanto, de
fazer reformas estruturais para tornar o crescimento sustentável nos próximos
anos. Terminado o período do boom de crescimento global, as mazelas da economia
Argentina começaram a reaparecer. E o
governo dos Kirchner que começou com um calote da dívida externa vai terminar
da mesma forma, com um novo calote, com uma inflação galopante.
E mais uma
vez a história se repete. A Argentina não aprende com os próprios erros,
tornando-se cada vez mais refém da mentalidade populista que asfixia a economia
e produz políticos mais interessados no poder do que realmente resolver os
problemas argentinos. Qualquer semelhança não é mera coincidência…
Amilton Aquino - O Mundo, 01/08/2014