quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

O enterro dos ossos


Espere mais um pouco. Este ano da (des)graça de 2015 não acabará amanhã nem talvez em mais 12 meses: ele tem tudo para se arrastar pelo menos até o réveillon de 2019, quando só então a esperança poderá ressurgir.

Militantes ocultos, embalados pelos eflúvios da ceia natalina, apostam que as facas voltaram às bainhas e o pó da rua assentou desde que a dissidência liderada por Barroso, o copioso, deu vitória parcial (que pode se tornar de Pirro) ao desgoverno Dilma há duas semanas. Ledo e ivo engano! A maioria governista flutuante (de 5 a 8, mais o voto de Minerva de Lewandowski sempre a favor) decretou a intervenção do Judiciário, de início, sobre o Legislativo e, em seguida, sobre nossa língua materna, que está ficando menos culta e mais feia.

Pois o artigo 51, parágrafo 1.º, da Constituição vigente, pelo menos até segunda ordem na próxima sessão plenária do Supremo Tribunal Federal (STF), reza: “Compete privativamente à Câmara dos Deputados: I – autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado”. Ao transferir para o Senado o poder de abrir o processo, avalizado por maioria de dois terços dos deputados, o STF deu ao verbo um sentido que o dicionário do mestre Houaiss não reconhece entre uma miríade de significados: o de apenas encaminhar. Autorizar quer dizer: tornar lícito, permitir, dar permissão a, consentir, dar direito a, dar motivo a, possibilitar, tornar válido, abonar, justificar e validar.

Mais subversivo ainda foi dar ao advérbio de modo privativamente, que significa exclusivamente, singularmente, especificamente, o sentido de subsidiariamente, cuja palavra latina, de que decorre no vernáculo, representa algo “na reserva, na retaguarda”. Com a troca semântica, o STF dispôs-se a atuar como Poder não autônomo (para Houaiss, “dotado da faculdade de determinar as próprias normas de conduta, sem imposições de outrem”), mas submisso (“disposto à obediência”, idem).

De volta à História: por que, além de provar a subserviência do Judiciário ao Executivo, a vitória de Dilma não seria parcial e lembraria a do rei de Épiro e Macedônia, ao lamentar uma batalha vitoriosa por ter nela perdido tantos soldados que passou a considerar a consequência inevitável da derrota na guerra? É que, numa prova de que o cérebro não é sua arma favorita, a presidente Dilma, no dia seguinte a esta, em vez de estender a mão à Nação, que amarga índices apavorantes de queda de atividade econômica, emprego e renda e inflação e dólar em alta, para buscar a conciliação para sair do atoleiro, enfiou o pé no acelerador: deixou de fingir que acenava ao mercado, abraçou o populismo e beijou o desastre.

Cérebro também não é o forte do candidato que ela derrotou em 2014. Aécio Neves flertou com o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, cuja popularidade é pior que a de Dilma, e assistiu de camarote à humilhante derrota da batalha nas ruas ao escolher outra banda podre da maçã. Depois, cuspiu na face da alternativa de poder à mão, Michel Temer, e correu para casa, de onde, aliás, parece nunca ter saído.

Ambos provam ao povo traído, irado e ressabiado que vale a descrição sempre atual do historiador Sérgio Buarque, que definiu como cordial (de cordialis, coração em latim medieval) a desfaçatez sem pudor do brasileiro na mistureba viciosa do público com o privado.

Chefe do governo e líder da oposição já confundiram muito rua e casa e agora mostram ter coração duro, sem coragem nem compaixão. No Rio, Dilma inaugurou o Museu do Futuro, exata metáfora da evidência de que o País do porvir, previsto por Stefan Zweig, fica cada vez mais distante deste. Agora temos até um museu para celebrá-lo, já que do passado nunca ninguém cuidou. E ela não voltou para consolar os pobres aflitos morrendo feito insetos às portas dos hospitais públicos fluminenses.

Mauricio Macri aborda as vítimas das enchentes na Argentina e Dilma as sobrevoa de helicóptero: ele sabe que governo implica compromisso com o povo; ela acha que é só ficar no poder e, com seu estilo tatibitate, repete diuturna e noturnamente a decisão histórica do imperador fanfarrão. Aécio não foi ao Sul nem deu atenção à devastação do Rio Doce pela lama tóxica no Estado onde nasceu, que governou e no qual foi por ela derrotado.

Para Elizabeth Bishop, o órgão mais utilizado pelo brasileiro é o fígado. A presidente não perturba o dela lidando com desgraças ao rés do chão e a céu aberto. O senador distribuiu em redes sociais cartões de um Natal de comercial de margarina no apartamento em que arrastões na praia de Ipanema não azedam seu humor. Dilma preferiu indultar petistas condenados pelo STF no mensalão e se solidarizar com um aliado bebum, ofendido no Leblon por bêbados do lado de lá, a consolar vítimas da microcefalia, da doença pública no Rio e da lama tóxica em Minas.

É tolo esperar que neste conflito nossa Pátria em frangalhos e escombros se una nas eleições que prenunciam mais do mesmo: em 2016, dona Marta do PT disputará a Prefeitura de São Paulo com seu Haddad do padim Lula? Em 2018, Aécio, Serra e Alckmin terão triunfo inusitado ou mais um fiasco?

Haverá uma regata olímpica à ré na Baía de Guanabara, descrita como “nojenta” pelo holandês Dorian van Rijsselberghe, campeão em Londres-2012 na classe RS:X? Ele teve de tirar sacos plásticos do casco do barco para vencer a Copa Brasil de Vela. E o mal-estar de um membro de sua equipe denota que estamos com o intestino solto.

Em seis meses, os coliformes fecais guanabarinos, os dejetos metálicos da Samarco, a seca e a microcefalia no Nordeste e os incêndios na Amazônia e na Bahia ganharão o mundo, mas não mais conquistando o planeta, como nos tempos do charme imbatível de Lulinha Paz e Amor. A nós, desde o tempo da Confederação dos Tamoios, só nos resta recolher os cacos e enterrar os ossos.


José Nêumanne, O Estado de São Paulo, 31/12/2015

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Do desmando à catástrofe


Terminou em catástrofe a política econômica ensaiada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e executada até o limite por sua sucessora, Dilma Rousseff: retração econômica de mais de 3% em 2015, inflação acima de 10% e um déficit recorde nas contas públicas. Sumiram no gigantesco ralo das finanças governamentais, entre janeiro e novembro, R$ 489,21 bilhões, soma equivalente a 9,04% do Produto Interno Bruto (PIB) estimado para o período. O valor sobe para R$ 549,31 bilhões, 9,30% do PIB, quando se consideram os 12 meses terminados até novembro. Esses números correspondem ao déficit nominal – incluída, portanto, a despesa com juros – do conjunto do setor público. O máximo admitido na União Europeia, uma das áreas mais afetadas pela crise iniciada em 2008, é 3% do PIB. A maioria dos países da região ficou abaixo disso em 2014 e em 2015.

Os números desastrosos deste ano são a consequência de uma longa fase de gastança irresponsável, de incentivo ao consumo sem estímulo à produção, de distribuição de benefícios mal concebidos e de péssima administração de um setor público aparelhado, loteado e saqueado numa orgia de corrupção.
A recessão chegou como grande final de uma fantástica sinfonia de erros e desmandos, depois de quatro anos com crescimento médio anual de meros 2,1%, inflação sempre muito longe da meta de 4,5% e destruição da indústria e do emprego industrial.

Com a retração da atividade e o desemprego em alta, a arrecadação do governo central – Tesouro, Banco Central (BC) e Previdência – ficou em R$ 1,12 trilhão entre janeiro e novembro, 6,60% menor que a de um ano antes, descontada a inflação. A receita líquida – depois das transferências a Estados e municípios – foi 6,80% inferior à do mesmo período de 2014. A despesa total caiu muito menos, apenas 3,40%, porque as contas públicas são muito rígidas há muito tempo e ficaram ainda mais engessadas durante a administração petista, iniciada em 2003. O gasto com pessoal só diminuiu 1,70%.

Apesar de tudo, o Tesouro ainda conseguiu algum superávit, de R$ 35,01 bilhões, mas esse resultado foi 19,2% inferior ao do ano passado, em termos reais. Mas o déficit da Previdência, de R$ 88,86 bilhões, cresceu 38,9% além da inflação. Assim, o governo central acumulou um déficit primário – sem os juros – de R$ 54,33 bilhões.

Pelo critério do BC, com foco na necessidade de financiamento, o déficit primário do governo central chegou a R$ 55,71 bilhões entre janeiro e novembro. O rombo total do setor público ficou em R$ 39,52 bilhões, porque a maior parte do déficit do governo central foi compensada pelo superávit dos governos estaduais e municipais, de R$ 19,49 bilhões. Este resultado é explicável em boa parte pela alta de preços da eletricidade e da gasolina, fortemente taxadas pelo Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços. Mas Estados e municípios também perderam receita, por causa da recessão.
Como o Tesouro deve pagar as pedaladas de 2014 – os repasses devidos a bancos federais –, falta somar uma despesa de R$ 57 bilhões. Ameaçada por um processo de impeachment, a presidente preferiu pagar de uma vez e evitar mais uma demonstração de desleixo fiscal. Em um mês o País saberá se o déficit primário de 2015 ficou abaixo dos R$ 119,9 bilhões admitidos pelo Congresso.


Apesar de tudo, o ex-presidente Lula e a cúpula do PT insistem no relaxamento da política fiscal e no aumento do crédito, como se os fatos nunca houvessem desmoralizado a política de gastança e de estímulo ao consumo seguida nos últimos sete anos. Além disso é incerto, até agora, se a presidente Dilma Rousseff percebeu o tamanho do desastre e os enormes equívocos da tal matriz econômica implantada em seu primeiro mandato. O novo ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, é um dos criadores desse monstrengo. Nada confirma, ainda, sua disposição de mudar de rumo e seguir o bom senso. O Brasil entra em 2016 sem radar confiável, no meio de um nevoeiro denso e com oficiais de péssimo currículo na cabine de comando.

O Estado de São Paulo - 30/12/2015

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

2015, o ano em que o Brasil despencou


O ano de 2015 não vai deixar saudades, muitos economistas dirão nestes últimos dias do ano. Ao que os astrólogos políticos acrescentarão: “Se vocês gostaram de 2015, esperem para ver como vai ser 2016...”. Os mais afoitos dos adivinhos farão previsões ainda mais sombrias para o ano que pronto se inicia, enquanto os economistas tentarão ser mais circunspectos, mas eles sempre erram em 10 de suas 12 previsões de crises, não é mesmo? Não pretendendo ser astrólogo político nem adivinho econômico, limito-me, do meu lado, a resumir o que me pareceu serem as principais características deste 2015, o ano horribilis em que o Brasil despencou espetacularmente.

Começamos por uma primeira ironia fraudulenta: o ministro da “nova matriz econômica”, que havia sido demitido mais de três meses antes, pela chefe da mesma matriz, e por meio da imprensa, continuou fazendo previsões impossíveis até o primeiro dia do ano, quando finalmente entregou o cargo ao seu sucessor, suposto representante dos Chicago-boys, mas que se revelou um corajoso partidário de aumento de impostos e de tímidos cortes seletivos nas despesas públicas, sem jamais tocar no gigantesco corpo balofo, obeso e disfuncional do Estado companheiro. O principal personagem do ano foi justamente este, o Estado companheiro, administrado por um governo idem, composto obviamente por companheiros engajados em sua manutenção dispendiosa (obviamente que apenas para a sociedade, não para eles).

Como diriam os americanos, o ano começou por um bing e terminou por um bang. O bing foi a composição esquizofrênica do governo, metade comprometida com gastos continuados e uma pequena, modesta parte tentando consertar os equívocos cometidos durante anos de gestão amadora, na verdade irracional, na política econômica (em várias outras políticas setoriais também). O bang é, obviamente, representado pelo pedido constitucional de impedimento da presidente, por crimes continuados na gestão fiscal – gestão talvez não seja o termo adequado, consagrando-se, ao longo do período, o mais vistoso conceito de “pedaladas” (em outros setores também).

Até o início do ano, todas as previsões do governo relativas aos principais indicadores econômicos pecavam por otimismo excessivo. Mas também os economistas independentes pecaram por escasso realismo em suas previsões. Todos eles foram duramente desmentidos pela mais cruel deterioração desses mesmos indicadores nunca antes vista desde crises longínquas. As agências de classificação de risco também se mostraram surpreendentemente lenientes em face do claro itinerário do Brasil em direção ao que desde já pode ser chamado de A Grande Destruição lulopetista.

Registre-se que essa destruição não foi o resultado de um mandato apenas. Parafraseando Nelson Rodrigues, podemos dizer que desastres não se improvisam: eles são o resultado de anos de acúmulo de erros, equívocos, trapalhadas, bobagens mais ou menos intencionais, enfim, daquilo que eu classifico como sendo os crimes econômicos do lulopetismo. Atenção: os crimes econômicos companheiros não o são exatamente no sentido do Código Penal, embora muitas vezes com eles se confundam; foi tal o empenho em cometê-los que se pode perguntar se muitos desses equívocos não foram deliberadamente planejados, o resultado de ações cientificamente calculadas, como diria o Chapolim Colorado.

A “compra” da refinaria de Pasadena, por exemplo, vista em retrospecto, quem poderia dizer, hoje, que se tratou apenas de um “erro de gestão”, ou seja, de um “cálculo mal feito”? Minha interpretação é a de que o “negócio” foi um sucesso, conduzido para produzir exatamente aqueles resultados, que são os que se conhecem atualmente em termos de movimentações bancárias entre vários paraísos fiscais no exterior. Enfim, um “sucesso” companheiro, até que um anônimo funcionário da Petrobrás – a ser homenageado na galeria dos “heróis desconhecidos” – chamou a atenção de membros do Ministério Público Federal e da Polícia Federal para certas “peculiaridades” do grande negócio.

As consequências foram aquelas que se viram: a Petrobrás, que chegou a valer mais de US$ 300 bilhões e figurar entre as sete primeiras companhias do setor, afundou-se numa crise que deveria ser terminal, se não fosse estatal (a preferida dos companheiros, que a transformaram numa “vaca petrolífera” continuamente ordenhada à exaustão). 

As contas públicas produziram um outro mergulho, de quase dez pontos do PIB, para um abismo cujo fundo ainda não se conhece exatamente, pois uma das especialidades companheiras foi justamente a maquiagem contábil, que eles já vinham praticando desde muitos anos entre o Tesouro e os bancos estatais, entre eles o BNDES, uma caixa-preta ainda não aberta pelos órgãos de controle. O ano foi tão horrível que aposto como a maioria dos leitores já se esqueceu desta coisa bizarra chamada Fundo Soberano do Brasil, uma invenção satânica dos mesmos autores da “nova matriz econômica” – na verdade, ele a precede de alguns anos – e que desapareceu de forma inglória, depois de deixar um buraco provavelmente superior a R$ 18 bilhões.

Uma contabilidade exata dos montantes envolvidos nos crimes econômicos do lulopetismo é singularmente difícil, pois, além dos custos estritamente monetários, isto é, recursos orçamentários dilapidados em projetos mal concebidos e mal implementados – talvez de propósito –, precisaríamos computar também o que os economistas chamam de custo-oportunidade, tudo o que se perdeu ao não se fazerem investimentos corretos, ou simplesmente sensatos. Quando é que economistas curiosos, procuradores atentos ou jornalistas investigativos avaliarão as imensas perdas causadas pelos crimes econômicos do lulopetismo? Já não é sem tempo...


Paulo Roberto de Almeida, diplomata e professor universitário. 
O Estado de São Paulo, 28/12/2015

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

A elite branca de olhos azuis


Para a esquerda, alguns playboys são melhores que outros

A discussão envolvendo Chico Buarque, Tulio Dek e Álvaro Garneiro Filho continua repercutindo na internet, sobretudo entre os círculos ligados à esquerda. Para eles, aquilo foi um ato fascista, uma demonstração de intolerância e falta de respeito com o grande cantor Chico Buarque, maior pela sua luta pela democracia do que pela genialidade de sua obra. Segundo esses mesmos, os antagonistas de Chico seriam apenas playboys influenciados pela mídia golpista que foram importunar esse grande brasileiro. Até o ex-presidente Lula emergiu da sarjeta onde se escondeu após os desdobramentos das operações Lava jato e Zelotes para prestar solidariedade ao camarada. Pelo visto, a acusação de que Chico é um esquerdista caviar doeu muito na grande esquerda. A mitômona Dilma, que não consegue concatenar uma frase com sentido, mandou algum sabujo escrever algumas palavras de apoio ao comunista caviar.

A alegação de que Chico lutou por democracia é falsa. Sendo ele um comunista declarado, fica evidente que ele lutou contra uma ditadura de direita porque prefere uma ditadura comunista como as que o próprio cantor sempre apoiou. Isso não é lutar por liberdade, é apenas lutar para trocar um senhor por outro ainda mais cruel. E dizer que o fato dele ser supostamente um gênio da musica (há controvérsias), não torna ninguém livre do contraditório.  Chico é um compositor razoável, um cantor irrelevante e um militante que defende um plano criminoso de poder.

No entanto alguns dos argumentos utilizados por essa esquerda tupiniquim devem ser observados com atenção: eles se ressentem do fato de que os críticos de Chico eram pessoas ricas e brancas. Qual é o problema, se o próprio Chico é rico e branco? “São playboys”. E o senhor Francisco Buarque de Hollanda, filho do sociólogo Sérgio Buarque de Holanda e Maria Amélia Buarque de Hollanda? Ao que se sabe esse senhor vem de famílias tradicionalíssimas. De acordo com a Constituição, ser rico, branco ou de família tradicional não confere ou retira nenhum direito de quem quer que seja. Ser playboy em tese não é defeito. Mas já que a esquerda rotulou os acusadores de Chico com esse epiteto, vamos analisar alguns fatos.

O rapper Túlio Dek, que discute com Chico no vídeo, é musico contratado da Arsenal Music desde 2008. Ainda que não desfrute da mesma aceitação que Chico no sofisticado circuito musical brasileiro, Tulio toca violão desde a juventude. Na juventude, Chico roubava carros. E a esquerda nem pode defendê-lo: ele roubava carros por diversão. Quando ele tinha 17 anos (a idade de Álvaro Garneiro Filho), o outro playboy do vídeo, ele foi pego pela polícia com um carro roubado. Passou seis meses em liberdade condicional. O honorável camarada ainda seria preso mais duas vezes, por atirar ovos em clientes em um bar de Itanhaém onde comemorava seu ingresso na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, e por provocar um acidente de carro em Santos. Ao que se sabe Álvaro Garneiro Filho nunca fez isso. Sobre o fato do herdeiro de Álvaro Garneiro ser obviamente um garoto rico, é bom lembrar que o dinheiro de seu pai não veio da Lei Rouanet ou de esquemas de propina da Petrobras. Álvaro Garneiro também veio de família rica, assim como Chico. A diferença e que sempre foi um empreendedor. Enquanto isso, Chico bebia, roubava carros, curtia a vida. Antes de ser musico e compositor, Chico nunca havia trabalhado. Um legítimo comunista, sustentado pelos pais.

Os argumentos apresentados pela esquerda para rotular os acusadores de Chico são realmente muito frágeis, demonstram desespero e indignação diante da ojeriza que eles despertam na sociedade brasileira. Argumentam que isso é coisa de quem se informa pela grande mídia, sendo que a grande mídia está com eles. Alegam que é ódio das elites, sendo que eles pertencem às elites. Falam em ódio, sendo que estão apenas colhendo o repudio de quem se viu ultrajado. A esquerda é tão canalha que a presidente que demorou uma semana para visitar Mariana depois da tragédia com a barragem da Samarco levou apenas algumas horas para se manifestar sobre a discussão de rua entre Chico e alguns transeuntes. A prioridade de Dilma não são os brasileiros, mas sim seus correligionários. Da mesma forma, a esquerda canalha se mobiliza em torno de um playboy boêmio porque ele foi confrontado por alguns rapazes com algo muito terrível para eles: a verdade. Tenham certeza que isso vai acontecer mais vezes. É o preço que se paga por tomar partido do carrasco. Outras pessoas serão acuadas nas ruas, confrontadas em espaços públicos, para finalmente serem descartadas na lata de lixo da história. A esquerda não está indignada com as agressões porque não aconteceram agressões ali. A esquerda está indignada porque entende que é legitimo pregar o socialismo para os pobres enquanto se vive no Leblon com segunda residência em Paris. Eles acreditam que fazem parte de uma nomenclatura, a classe dirigente que conduz a revolução. Eles sabem o que é melhor para o povo mais do que o próprio povo, e por isso tem o direito sagrado de usufruírem dos bens do capital. É por isso que para eles, alguns playboys são melhores que outros.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

A Ditadura do Latinório


A maioria do Supremo Tribunal Federal aproveitou a sessão convocada para deliberar sobre o processo de impeachment para revogar o equilíbrio entre os Poderes. Na cabeça de oito dos 11 bacharéis em Direito indicados pela Presidência da República e aprovados pelo Senado depois de uma sabatina com cara de chá de senhoras, os três Poderes são independentes, mas só o Judiciário não é dependente de outro. Já o Executivo e o Legislativo dependem do que dá na telha do Poder que manda nos dois e não obedece a nenhum.
Declamando criativas interpretações de normas constitucionais, verbetes de dicionário e citações em Latim, o bloco majoritário fez o diabo. Prorrogou por tempo indeterminado a sobrevida da presidente agonizante, redesenhou o Congresso para subordinar a Câmara do renegado Eduardo Cunha ao Senado do patriota Renan Calheiros, rebaixou 513 representantes do povo a capinhas de 81 representantes das 27 unidades federativas e avisou que, sem o endosso dos senadores, decisões dos deputados valem tanto quanto palpites da mulher do cafezinho. Fora o resto.
Não faz tanto tempo assim que os ministros, escolhidos entre os melhores e mais brilhantes, efetivamente compunham o corpo de elite do universo jurídico brasileiro. Também assolado pela Era da Mediocridade, o STF foi ficando parecido com os vizinhos de praça. Com o advento da Era da Canalhice, o critério adotado pela seita lulopetista para preencher vagas no STF completou o estrago. A escolha deve atender aos interesses do Planalto. Ponto.
Só podia dar no que deu. Mesmo disfarçados de turista em dia de visitação pública, certos juízes seriam barrados na portaria da Corte Suprema americana. Lá o esquema de segurança é severo com figuras esquisitas. Os togados falam muito, e falam coisas estranhas. Escrevem demais. e escrevem coisas tão difíceis que nem sobra tempo para pensar, conversar com gente normal, saber o que vai pelo Brasil real, em tudo diferente da Pasárgada onde moram e decidem o que pode e o que não pode, o que é certo e o que é errado.
Um ministro do STF não se aflige com o desemprego em expansão nem com a inflação descontrolada, não sucumbe a surtos de indignação quando confrontado com as cifras da roubalheira e os devastadores efeitos da incompetência. Não chega a perder o sono com a desfaçatez da seita que pariu a maior crise da história republicana. Tudo somado, os superdoutores não sabem que a paciência da plateia acabou.
“Japona não é toga”, lembrou em outubro de 1964 o então presidente do Senado, Auro Moura Andrade, para barrar a investida autoritária de chefes militares dispostos a violentar a Constituição. Com quatro palavras, Auro ensinou que cabia ao Supremo Tribunal Federal, não às Forças Armadas, lidar com questões constitucionais — pela simples e boa razão de que general não é juiz.
É hora de adaptar a frase aos tempos modernos, invertendo a ordem dos substantivos para transformá-la em advertência aos oniscientes de araque. Antes que tentem proclamar a Ditadura do Latinório, eles precisam saber que toga não é japona. A lição será assimilada em poucos segundos se for ministrada pela voz das ruas.
Augusto Nunes, 20/12/2015

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Estratégia imoral


Interessa muito ao governo de Dilma Rousseff e aos corruptos em geral espalhar a versão segundo a qual a Operação Lava Jato é a responsável pela instabilidade política e econômica do País. Ao atingirem gente graúda por suspeita de participação nesse grande escândalo, as autoridades policiais e judiciais, conforme essa interpretação, comprometem o trabalho do Congresso e assustam o meio empresarial, prejudicando o País no momento em que este mais precisa de serenidade.

Embora seja de um cinismo patente, tal visão tem conquistado adeptos. Por essa razão, e por incrível que pareça, tornou-se necessário enfatizar, com todas as letras, que a instabilidade que hoje paralisa o Brasil é resultado do comportamento devasso dos políticos e empresários envolvidos no assalto ao Estado patrocinado pelo governo petista, e não do esforço da polícia, do Ministério Público e da Justiça para pôr cobro nesse descalabro. Se não houvesse a esbórnia do petrolão, do mensalão e de outros escândalos menores, não haveria crise nas atuais dimensões. E essa crise só será superada quando a Justiça cumprir integralmente sua missão.

Trata-se de uma constatação elementar, mas parece que, em meio ao tumulto em que se transformou a vida política nacional, o óbvio já não é mais tão ululante – para satisfação dos que têm culpa no cartório. Todos concordam – alguns mais por conveniência do que por convicção – que é preciso punir os corruptos, mas há quem sustente que a Lava Jato, com suas complexas conexões e seus desdobramentos imprevisíveis, adiciona insegurança a um cenário já suficientemente abalado. “O que nos preocupa é a instabilidade política que isso gera”, comentou o governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), em agosto. De lá para cá, essa visão que toma o efeito pela causa só tem se espalhado. Trata-se de uma tentativa de minimizar a avassaladora crise moral produzida pelo aparelhamento inescrupuloso da máquina do Estado pelo PT, acolitado por empresários e funcionários desonestos.

Essa visão interessa muito a Dilma, ao PT e a seus parceiros, que precisam desesperadamente desmoralizar a Lava Jato. A operação, como se sabe, frustrou um gigantesco sistema de arrecadação criminosa de fundos públicos, que atendia a interesses os mais diversos dentro do condomínio de poder construído por Lula e mantido por Dilma. Era essa base, alicerçada na corrupção e no compadrio, que prometia garantir fartura de recursos para sedimentar o lulopetismo no poder. Agora, com esse edifício de desfaçatez exposto à luz do dia, cresce a certeza de que ninguém – ninguém, frise-se – será poupado. “Tem tanta coisa para acontecer ainda nessa Lava Jato”, disse o lobista Fernando Baiano, delator da Lava Jato. É justamente isso o que apavora o governo.

O Planalto nunca escondeu seu desconforto em relação à Lava Jato, o que é natural, dado o envolvimento de muitos de seus inquilinos nos escândalos. Tratou de insinuar, por exemplo, que a operação contra próceres do PMDB, inclusive ministros, foi açodada. Em nota, a Presidência disse esperar “que todos os investigados possam apresentar suas defesas dentro do princípio do contraditório” – como se as buscas não tivessem sido autorizadas pelo Supremo Tribunal Federal, guardião das garantias constitucionais.

Ao mesmo tempo, o governo alardeia que a operação tende a agravar a instabilidade política. A estratégia é recorrente. Em julho passado, por exemplo, Dilma disse, em reunião com seus ministros, que “o pior é a instabilidade” política e econômica causada pela Lava Jato. “Para vocês terem uma ideia, a Lava Jato provocou uma queda de um ponto porcentual no PIB brasileiro”, afirmou Dilma, numa tentativa torpe de atribuir às ações da Justiça a culpa pelo desastre econômico causado apenas por sua incompetência. Na mesma época, a Fundação Perseu Abramo, do PT, afirmava que a Lava Jato “criou um cenário de incerteza política que impede a criação de coalizões sólidas, que permitam ao governo implementar sem maiores custos seu projeto” – isto é, responsabilizou a operação policial pelo desastre político que tem sido o governo Dilma.


Cabe aos brasileiros honestos não se deixarem levar por essa tentativa imoral de constranger os que se empenham em limpar o monturo acumulado por essa gente.

O Estado de São Paulo, 18/12/2015

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

O pastelão do rebaixamento


Desgovernado e indefeso, o Brasil foi mais uma vez atropelado pela realidade, quando a Fitch, uma das três mais importantes agências de classificação de risco, anunciou o rebaixamento do País ao grau especulativo. Essa decisão é a senha para grandes fundos estrangeiros fugirem dos papéis brasileiros, tornando mais difícil o financiamento do Tesouro e de empresas tanto estatais quanto privadas. Essa é a regra, quando pelo menos duas daquelas agências avaliam os títulos de um país como junk bonds, isto é, como lixo. A primeira foi a Standard & Poor’s (S&P), em setembro, e ninguém se surpreenderá se a Moody’s em breve seguir o mesmo caminho. O informe da Fitch foi divulgado menos de 24 horas depois de mais um espetáculo de irresponsabilidade proporcionado ao público internacional pela presidente Dilma Rousseff. Na véspera, ela havia decidido propor ao Congresso uma nova meta fiscal para 2016, um superávit primário entre zero e 0,50% do Produto Interno Bruto (PIB).

Mais uma vez ela havia preferido o populismo e a gastança, desprezando a opinião do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, favorável a um resultado primário equivalente a 0,7% do PIB. Mesmo esse resultado seria modesto, mas pelo menos indicaria um compromisso de melhora das contas públicas, indispensável para a recuperação da economia nacional.

Noticiada pela televisão já na terça-feira à noite, a decisão da presidente foi imediatamente interpretada como sinal para a demissão, adiada muitas vezes, do desprestigiado e até humilhado ministro da Fazenda. Ele mesmo havia, na semana anterior, ameaçado sair, se a meta fiscal fosse reduzida a zero, como foi, na prática, quando a presidente mais uma vez deu preferência à opinião do ministro do Planejamento, Nelson Barbosa. Com isso, mais uma vez prevaleceu a desastrosa “nova matriz econômica” implantada no mandato anterior.

Ontem, no entanto, o ministro da Fazenda continuava no posto, falando sobre medidas necessárias para a recuperação das contas públicas e do crescimento e negando como assuntos de folhetim as notícias sobre sua provável saída.

Quando a Fitch anunciou a decisão, Levy estava em reunião com o presidente do Senado, Renan Calheiros, discutindo a tramitação de medidas de ajuste. Enquanto isso, o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Andrade, comentava numa entrevista coletiva a importância de bem escolher o substituto de Levy. O noticiário do Broadcast, serviço de informação em tempo real da Agência Estado, estava recheado, e assim continuou depois do comunicado da Fitch, de comentários e análises colhidos no mercado sobre a esperada sucessão na Fazenda.

Quando a presidente deu preferência à opinião do ministro Nelson Barbosa, no envio da proposta orçamentária ao Congresso, no fim de agosto, a consequência imediata foi o rebaixamento do País pela S&P. A história agora se repetiu, mas com alguns pontos agravantes, como a referência ao processo de impeachment, aos dados econômicos piores que os daquele momento e à enorme dificuldade para a melhora do resultado fiscal em 2016.

O ministro da Fazenda quase festejou o rebaixamento, descrevendo-o como um estímulo a mais para fazer a coisa certa. No Congresso, parlamentares se apressaram a mudar de novo a meta de superávit primário, eliminando o zero e deixando só o 0,50%. Nem os Trapalhões fariam uma história mais aloprada. Além disso, há uma originalidade: o governo brasileiro foi além da comédia e inventou a tragicomédia de pastelão.


Depois de tudo, a permanência do ministro Levy no governo só terá sentido se a presidente se livrar do ministro do Planejamento ou se o atual ministro da Fazenda aceitar a permanência numa posição subalterna e humilhante. A continuação da história dependerá, é claro, de como a presidente Dilma Rousseff perceba os acontecimentos e selecione a ação mais conveniente. Mas para isso ela precisará exibir uma capacidade de percepção jamais demonstrada em público.

O Estado de São Paulo, 17/12/2015

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

O país no labirinto


Esta é a pior crise da história democrática e supera inclusive a que levou à destituição de Fernando Collor. A queda livre do PIB continua, a inflação não tem âncora, os escândalos de corrupção se sucedem, os conflitos no parlamento escalam, os presidentes das duas Casas do Congresso estão sob investigação, e um deles usa descaradamente a instituição para se defender.

Alguns ingredientes se somam para dar um clima de calamidade ao momento em que vivemos. O pior deles é a onda de microcefalia e a falha do governo na luta contra o agente propagador da tragédia. O governo decreta estado de emergência, mas nem assim consegue entregar, em áreas mais vulneráveis, remédio suficiente para matar a larva do inseto. O risco é a doença continuar avançando, sem que se saiba como detê-la e proteger nascituros.

Diante da crise de confiança em sua capacidade de continuar administrando o país, que ocorre por sólidas razões, o PT reage de forma demagógica. A técnica é mais uma vez dizer que são ricos contra pobres, que há um golpe em marcha e que a democracia está em perigo. Foi o que disse esta semana o ex-presidente Lula. A presidente Dilma usou novamente um evento do governo para distorcer os fatos. Segundo disse, as pedaladas foram feitas porque ela queria distribuir casas populares. Todos sabem, inclusive ela mesma, que não foi isso que aconteceu.

O “Valor Econômico” trouxe na sexta-feira uma reveladora reportagem da repórter Leandra Peres que conta os alertas de funcionários do Tesouro contra as pedaladas fiscais. Eles previram em 2013 que as manobras poderiam levar o Brasil a perder o grau de investimento e o governo a acumular passivo de R$ 41 bilhões com os bancos públicos. E alertaram em documentos e em reuniões com o então secretário do Tesouro Arno Augustin. O que os funcionários previram aconteceu, mas o alerta foi tratado como rebelião do corpo técnico.

A crise econômica existiria mesmo se não houvesse esta convulsão política, porque a presidente Dilma tomou o caminho errado e perigoso na economia com a “Nova Matriz Macroeconômica”. Quando ela começou a fracassar e a minar as finanças públicas, o governo decidiu esconder a realidade. O erro não foi apenas baixar os decretos de crédito suplementar sem autorização do Congresso. Houve um ataque sistemático e deliberado aos princípios da Lei de Responsabilidade Fiscal por anos. Esta é a causa do quadro deplorável das contas públicas em 2015.

A crise política complica tudo e sua dimensão também não tem precedentes. O Brasil já viu confusões no Congresso como a CPI dos anões do Orçamento, do PC Farias, do Mensalão. Em todas elas houve políticos atingidos e cassados. Atualmente, no entanto, estão sob suspeição os dirigentes da Câmara e do Senado. A linha sucessória está com seus mandatos em discussão, com maior ou menor grau de envolvimento em irregularidades. Durante a crise de Collor de Mello, tinha-se o vice-presidente Itamar Franco que estava isolado do grupo no poder e nem partido tinha à época. Isso o preservou do conflito travado. Além disso, o movimento Ética na Política, liderado por Betinho, criou a esperança de um tempo melhor, e o grupo de ministros na defesa da governabilidade ajudou a transição.

A última semana foi particularmente ruim no Congresso e as cenas de ataques físicos entre deputados, de quebra do decoro e das cabines de votação, dos xingamentos recíprocos no Conselho de Ética foram em bases diárias. Era começar as sessões e a briga ser retomada. Parece um Congresso que perdeu a compostura e a sanidade.


A fusão das crises política, econômica e empresarial tornaram este momento um dos mais complicados da nossa história, e certamente o pior desde a redemocratização. O país neste momento não tem sequer a Lei de Diretrizes Orçamentárias aprovada. Não sabe, portanto, as bases do orçamento de 2016. O Orçamento que o governo enviou é deficitário e depois ele mandou novas medidas para garantir o superávit. Uma bagunça completa e que terá que tramitar num Congresso em pé de guerra. A presidente com sua inabilidade política e inépcia econômica improvisa tentativas de solução que não funcionam. Não há saídas fáceis para o labirinto em que o país entrou.

Míriam Leitão, O Globo, 13/12/2015.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

E depois do impeachment?


O governo Dilma está paralisado há quase um ano por sua própria incompetência e pelo transbordamento do lamaçal da corrupção. Como consequência, os brasileiros – principalmente a população de baixa renda – amargam uma recessão econômica impiedosa.

A proposta de afastamento da principal responsável por essa crise – a presidente Dilma Rousseff – cria um momento propício para a busca de consenso a respeito do que verdadeiramente importa: o que fazer para tirar o País do buraco. Não basta, por um lado, garantir que a presidente deve ficar onde está. Nem é suficiente, por outro, argumentar que ela precisa sair. O processo de impeachment decidirá, inelutavelmente, essa questão.

O problema é o que vem depois e parece que não há muita gente preocupada com isso. A mediocridade do embate entre os protagonistas da crise revelou à sociedade o baixo nível da política brasileira. Chegou-se ao impasse que começa agora a se romper exatamente porque ninguém estava genuinamente preocupado com o Brasil, e sim com seus interesses nem sempre defensáveis.

Dilma tentava não naufragar na própria incompetência. Lula e o PT se desequilibraram com o esfacelamento de seu projeto de poder. Vários partidos se prevaleceram da crescente debilidade de Dilma para conquistar mais espaço na máquina governamental, de preferência onde os orçamentos são mais robustos. Na “base aliada” revelaram-se desavergonhadamente os “partidos da boquinha” e impolutos personagens que só pensavam em dar aqui para tomar ali. A oposição gastou o tempo operando no varejo, por ser incapaz de articular qualquer coisa maior. Chegou à mesquinharia de assumir posições contrárias às que sempre defendeu, achando que, com isso, encurralava o governo.

A crise brasileira é séria e, qualquer que seja o resultado do processo de impeachment, será preciso encará-la responsavelmente. Não se trata “apenas” de resolver a lamentável e perigosa situação fiscal do País. É preciso colocar o Brasil novamente nos rumos do desenvolvimento econômico e social. É preciso desarmar as bombas sistematicamente instaladas pelo lulopetismo nos últimos 13 anos. É preciso voltar a discutir e a implementar as chamadas reformas estruturantes, que há mais de uma década estão paralisadas. Elas são mais necessárias do que nunca. O completo abandono dessa pauta pelos governos petistas não resolveu o problema, apenas tornou sua resolução mais difícil. E como não falar dos temas de sempre, sempre necessários e sempre mal resolvidos: saúde, educação, segurança, saneamento básico?

Para fazer o que precisa ser feito, é necessário muito mais do que um governo competente. Bons quadros são uma condição necessária, mas estão longe de ser uma condição suficiente. A delicada situação brasileira exige um governo fruto de uma união nacional, que o sustente diante das dificílimas batalhas que terá de enfrentar.

Não pode ser um governo refém de partidos, de movimentos sociais ou de determinado segmento da sociedade civil. Diante dos imensos desafios que o Brasil tem pela frente, será preciso um governo com capacidade para aplicar medidas amargas. Pois não se sai de uma crise como a atual agradando a todos, ou mantendo intactos os benefícios e privilégios de uma era onde o populismo dava a última palavra. Será preciso um governo forte, capaz de congregar as melhores forças da sociedade brasileira.

Falar em governo forte nada tem a ver com autoritarismo. Refere-se à capacidade de não se deixar dominar pela baixa política, pelo toma lá dá cá, pelas barganhas. Para isso é imprescindível um governo ético, que não pactue com a ilegalidade. Só assim terá autoridade e liberdade para fazer o que precisa ser feito.

O processo de impeachment apenas destrava o problema. A crise não será resolvida por um passe de mágica nem por um salvador da pátria. Não resta dúvida de que o País sairá da crise, mas para isso será preciso um governo de união nacional, que desperte as melhores energias da sociedade brasileira.

O Estado de São Paulo, 7/12/2015

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Quase tudo em ruínas

Obras da transposição do Rio São Francisco em ruínas.
Agora que tudo está em ruínas, exceto algumas instituições que resistem, não me preocupo em parecer pessimista. Quando anexei às listas das crises o grave momento ambiental, algumas pessoas ironizaram: el Niño? Naquele momento falava apenas da seca, da tensão hídrica, das queimadas e enchentes. Depois disso veio o desastre de Mariana, revelando o descaso do governo e das empresas que, não se contentando em levar a montanha, transformam o Doce num rio de lama.
No fim de semana compreendi ainda outra dimensão da crise. O Brasil, segundo especialistas, vive uma situação única no mundo: três epidemias produzidas pelo Aedes Aegypti (dengue, chikungunya e o zika vírus). O zika está sendo apontado como o responsável pelo crescimento dos casos de microcefalia. Sabe-se relativamente pouco sobre ele. E é preciso aprender com urgência. O dr. Artur Timerman, presidente da Sociedade Brasileira de Dengue e Arboviroses, considera a situação tão complexa como nos primeiros momentos da epidemia de aids.

Agora que está tudo em ruínas, restam os passos das instituições que funcionam, o prende aqui, prende lá, delata ou não delata, atmosfera de cena final, polícia nos calcanhares. Lembra-me a triste cena final do filme Cinzas e Diamantes, de Andrzej Wajda. A Polônia trocava um invasor, os nazistas, por outro, os comunistas: momento singular. No entanto, há algo de uma tristeza universal na Polonaise desafinada e no passeio do jovem casal por uma cripta semidestruída pelos bombardeios.

Aqui, a cena não é de filme de guerra, ocupação militar, mas de um thriller policial em que a quadrilha descoberta vai sendo presa progressivamente. Enquanto isso, não há governo para responder ao desemprego, empobrecimento, epidemias, mar de lama e ao sofrimento cotidiano dos brasileiros.

As cenas finais são eletrizantes e a ausência de um roteirista tornou o filme político ainda mais atraente. Mas perto da hora de acender a luz os cinemas se preparam, abrem as cortinas e já se pode ver, de dentro, como é sombria a noite lá fora.

Quase todos concordam com a gravidade da crise, nunca antes neste país o governo errou tanto, corrompeu tão disciplinadamente a vida política, corroeu tanto os alicerces da jovem democracia, engrandecida com a luta pelas diretas. Naquele momento, a bandeira das diretas tinha conotação positiva, era a esperança que nos movia. Muitos acham que só ela nos move. Mas diante das circunstâncias ameaçadoras é o instinto de sobrevivência que nos pode mover: o Brasil está se desintegrando.

Hoje a esperança só pode ser construída na luta pela sobrevivência. Chegou a hora de conversarmos por baixo, uma vez que do sistema político não vem resposta. Naturalmente, saindo do pequeno universo, abrindo-se para as diferentes posições no campo dos que querem a mudança. Nada que ver com conversa de ex-presidentes ou com essa história de que oposição e governo têm de se entender.

O governo tem de entender que chegou sua hora, pois é o grande bloqueio no caminho da esperança. Não é possível que, no auge de uma crise econômica, epidemias e desastre ambiental, o País aceite ser governado por uma quadrilha de políticos e empresários.

Às vezes me lembro do tempo do exílio, quando sonhava com um passaporte brasileiro. Agora é como se tivesse perdido o passaporte simbólico e de certa maneira voltasse à margem.

Vivemos momento em que quase tudo está em ruínas, como se fôssemos uma multidão de pessoas sem papel. O foco nas cenas de desmonte policial é importante. O voto direto dos senadores não seria aprovado, no caso Delcídio, não fora a vigilância da sociedade.

No entanto, a gravidade da situação pede muito mais. Há um momento em que você se sente órfão dos políticos do País. Mas logo em seguida percebe que é preciso caminhar sem eles. Hora de conversar na planície.

Não descarto a importância de um núcleo parlamentar que nos ajude a mandar para as Bermudas o triângulo Dilma, Renan, Cunha. Mas as grandes questões continuam: como recuperar a economia, como voltar a crescer de forma sustentável, como reposicionar o Brasil no mundo, distanciando-nos dos atrasados bolivarianos?

Uma das muitas maneiras de ver os limites do crescimento irracional é o próprio desastre em Mariana, a agressão ao Rio Doce. A essência desse crescimento é o depois de nós, o dilúvio. Às vezes o dilúvio se antecipa, como no distrito de Bento Rodrigues, e fica mais fácil compreender a gigantesca armadilha que legamos às novas gerações. É preciso uma conversa geral e irrestrita entre todos os que querem mudar, tirando da frente os obstáculos encalhados em Brasília.

Não se trata de estender o dedo como naquele cartaz do Tio Sam, dizendo: o País precisa de você. Na verdade, o caminho é mostrar que você precisa do País; se ele continuar se enterrando, alguns sonhos e perspectivas individuais se enterram também.

Compreendo as pessoas que temem a derrubada do governo e seus aliados porque não sabem precisamente o que virá adiante. Não sei se isto as conforta, mas o descobrimento do Novo Mundo foi feito com mapas equivocados e imprecisos. A fantasia dos navegantes estava povoada de monstros e prodígios, no entanto, acabaram sendo recompensados por se terem movido.

O desafio de agora é menor do que lançar-se nos mares desconhecidos. Os mapas nascem de um amplo diálogo e, mesmo se não forem cientificamente precisos, podem nos recompensar pela movida.

Desde o princípio, o impeachment era uma solução lógica, mas incômoda. Muita gente preferiu ficar com um governo porque ele foi eleito. Não importa se a campanha usou dinheiro do petrolão, Pasadena, não importam as mentiras, a incapacidade de Dilma. Ela foi eleita. Tem um diploma. E vamos dançar nas ruínas contemplando o luminoso diploma, cultuando sua composição gráfica, a fita colorida.

Muitos povos já se perderam no êxtase religioso como resposta a uma crise profunda. Mas os deuses eram mais fortes, o sol, a fecundidade, a morte. Estamos acorrentados a um diploma.


Fernando Gabeira, O Estado de São Paulo, 4/12/2015

O fim de uma religião

A ainda presidente Dilma Rousseff cometeu crime de responsabilidade – de vários modos, violou a Lei 1.079 – e sabe disso. Se o fez por ignorância ou dolo, essa seria matéria que os tribunais penais levariam em conta na hora de modular a pena.

Ocorre que a Câmara, que autoriza ou não a abertura do processo de impeachment contra ela, e o Senado, que processa e julga, são instâncias políticas, o que não quer dizer "arbitrárias". Afinal, para que atuem, é preciso que crimes – de responsabilidade! – tenham sido cometidos. E foram.

É por isso que a anunciada disposição dos petistas de recorrer ao Supremo contra a decisão de Eduardo Cunha (se é que o farão), alegando que Dilma não estuprou as contas por dolo, é ridícula. Permito-me uma pequena digressão, antes que avance.

Religiões, partidos, grupos e indivíduos são dotados de mitos fundantes, cujas verdades são irredutíveis à ordem dos fatos. Não se pode, por exemplo, ser cristão pondo a redenção dos oprimidos no lugar do dogma do cordeiro imolado, como faz a dita Teologia (Escatologia) da Libertação. O triunfo do Deus crucificado está na renúncia aos dons divinais no ato sacrificial, não na punição exemplar ou didática a seus perseguidores ou no perdão por motivos estratégicos ou pragmáticos. A ascese nunca é deste mundo.

Cada um de nós – mesmo sem pertencer a um judaísmo, a um cristianismo, a um islamismo ou a um budismo quaisquer – ancora a sua pequena lenda pessoal num conjunto de abstrações que cobra dos outros um respeito ritual. Cada um de nós é o sumo sacerdote de um culto porque é também o procurador de uma ortodoxia: só existe amizade, amor, companheirismo onde há respeito a valores.

Os petistas cometem um erro fatal quando vociferam a sua inocência e acusam o complô dos adversários, ignorando todas as óbvias violações do solo sagrado que seus sacerdotes promoveram. No PT, não há espaço para arrependimento. Não há pecado. E, portanto, não pode haver expiação e perdão.

Viveremos, sem dúvida, dias interessantes. O que está se desconstituindo – para o bem do país, acho eu – não é apenas um partido político, mas a crença de que um grupo de pessoas detém o monopólio da justiça, da virtude e das boas intenções. Também a reputação de Lula, o mensageiro da Palavra, se esfarela numa velocidade com a qual não contavam nem seus adversários mais ferozes.

Na quarta (2) à noite, minutos depois da decisão de Eduardo Cunha, as falanges do PT na internet já convocavam os fieis, em número sempre menor, para a guerra santa, tentando emprestar verossimilhança a uma farsa que cotidianamente é desmoralizada pelos fatos.

Chega a ser impressionante que o PT não se dê conta de que aquela gesta que lhe deu corpo, a luta dos bons contra os maus, já não encontra mais eco na realidade. O partido não é vítima de uma narrativa contada por terceiros, como tentam fazer crer alguns pistoleiros morais disfarçados de intelectuais e jornalistas. Não!

Os doutores de sua igreja é que se mostraram maus guardiões dos fundamentos que formavam uma irmandade, que propiciavam aos fiéis a experiência do pertencimento, a despeito das vicissitudes do mundo real.


Melhor que assim seja! Já estava na hora de o Brasil ter, de novo, um governo laico. À sua maneira, os pecadores do PT nos salvaram. 

Reinaldo Azevedo, Folha de São Paulo, 4/12/2015

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Dilma, campeã do fracasso

A rainha da mandioca, quebrando o país da mesma forma que quebrou
sua loja de 1,99.
Em mais um fiasco de proporções olímpicas, a presidente Dilma Rousseff bateu uma porção de recordes negativos no terceiro trimestre e conseguiu superar – para o lado pior – até as projeções mais pessimistas. O PIB foi 4,5% menor que o de julho a setembro do ano passado. O valor acumulado em 12 meses ficou 2,5% abaixo do apurado no período anterior. O produto da indústria foi 6,7% inferior ao do trimestre correspondente de 2014. O investimento em capital físico, isto é, em máquinas, equipamentos e obras, recuou 15% em relação ao realizado um ano antes. Todos esses dados são os piores da série iniciada em 1996, mas o conjunto de números desastrosos é mais amplo e inclui também o balanço do consumo familiar, arrasado pelo desemprego crescente, pela erosão da renda real, pela dificuldade de acesso ao crédito e pelos juros insuportáveis.

A economia se manteve no vermelho em todos os trimestres de 2015. De janeiro a setembro o PIB foi 3,2% menor que o de igual período de 2014. No fim da semana passada, o mercado financeiro projetava para este ano uma contração econômica de 3,19%. Em seu último relatório de avaliação de receitas e despesas federais, o Ministério do Planejamento alterou de 2,44% para 3,10% a recessão estimada para 2015. O desastre contabilizado até agora já estimula consultorias e departamentos econômicos de instituições financeiras a rever as estimativas para o próximo ano. Na última semana, a mediana das projeções do mercado indicava uma queda de 2,04% em 2016.

Com inflação batendo em 10% e talvez superando esse nível neste ano, muitos economistas abandonam a perspectiva de redução de juros nos próximos meses. Alguns admitem até o risco de novo aumento, apesar do tamanho da recessão. A alta de preços projetada para 2016 já supera 6,6%. Sem expectativa de melhora sensível nas contas públicas, o Banco Central (BC) continuará praticamente sozinho na política anti-inflacionária, sem espaço, portanto, para afrouxar sua política.

Mesmo sem novo aumento de juros, haverá pouco espaço para a reativação do consumo e para a expansão do investimento. Mantida a taxa básica em vigor, de 14,25% ao ano, todas as funções de produção e consumo continuarão fortemente travadas. No terceiro trimestre o consumo das famílias foi 4,5% inferior ao de um ano antes. O desemprego já está próximo de 9% e poderá passar de 10% dentro de pouco tempo.

Sem emprego e sem crédito, os consumidores continuarão retraídos. Com as famílias tentando, cautelosamente, sobreviver ao aperto, haverá pouco estímulo à retomada da produção industrial. Restará buscar o mercado externo, mas a maior parte da indústria está pouco preparada para a competição internacional.

Mesmo com algum estímulo, a indústria terá pouco vigor para um crescimento sustentado. Sem investimento em máquinas, equipamentos, energia e sistemas de transporte, o potencial de expansão, especialmente da indústria, é muito limitado. Esse potencial, tudo indica, diminuiu nos últimos quatro ou cinco anos.

O investimento em capital físico, no terceiro trimestre, ficou em 18,1% do PIB, a menor taxa para o período de julho a setembro desde 2010. A maior taxa, de 21,6%, foi registrada no terceiro trimestre de 2013. A maioria dos países em desenvolvimento exibe níveis de investimento bem maiores, quase sempre acima de 25%.


Mesmo com inegável insegurança, a maior parte das economias desenvolvidas continua em crescimento – até aquelas mais atingidas pela crise nos últimos anos. As emergentes deixam o Brasil muito atrás. A presidente Dilma Rousseff conseguiu no primeiro mandato um crescimento econômico médio de 2,21% ao ano, enquanto os vizinhos mais saudáveis avançavam a taxas médias entre 4% e 6%. Seu quinto ano na Presidência deve terminar com uma contração superior a 3% e mais recessão está prevista para 2016. Em nenhum momento, no entanto, ela reconheceu qualquer erro. Este sintoma é mais agourento que qualquer projeção conhecida

Opinião, O Estado de São Paulo, 2/12/2015
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