Neste
momento em que a Operação Lava Jato desconstrói a imagem de Lula, depurando-a
de todos os artifícios, instala-se uma espécie de assombro geral nos meios
intelectuais e artísticos do país, onde ainda reina forte resistência aos
fatos.
Tal
depuração baseia-se em alentados registros – e o mais eloquente vem da própria
voz de Lula, captada nos recentes grampos telefônicos, autorizados pela
Justiça, em que exibe solene desprezo pelas instituições, em especial o
Judiciário.
Não se
deve apenas aos truques do marketing político-eleitoral a construção da imagem
do falso herói. Bem antes do advento dos Duda Mendonça e João Santana, hoje às
voltas com a Justiça, Lula já desfrutava de altíssimo conceito redentor,
esculpido no âmbito universitário, onde o projeto do PT foi engendrado.
E aqui
cabe repetir o bordão lulista: nunca antes neste país, um presidente da
República foi brindado com tantos títulos honoris causa por parte de
universidades, mesmo sem ter dado – ou talvez por isso mesmo - qualquer
contribuição à atividade intelectual.
Ao
contrário: Lula e seus artífices difundiram o culto à ignorância e ao
improviso, submetendo a atividade intelectual à condição subalterna de mera
assessora de um projeto populista.
A
epopeia de alguém que veio de baixo e galgou o mais alto cargo da República
fascinou e comoveu a intelligentsia brasileira, que o transfigurou em gênio da
raça. Pouco interessava o como e o quê fez no poder – questões que agora se
colocam de maneira implacável -, mas o simples fato de que a ele chegou.
O
símbolo falsificava o ser humano por trás dele. E o país embarcou numa ilusão
de que agora, dolorosamente – e ainda com espantosas resistências, – começa a
desembarcar.
Fernando
Henrique Cardoso, símbolo da nata acadêmica nacional, deixou suas digitais
nesse processo. A eleição de Lula, em 2002, contou com sua colaboração. Como se
recorda, FHC desengajou-se da campanha presidencial de José Serra, dizendo a
quem quisesse ouvi-lo: “Agora, é a vez de Lula”.
Conta-se
que, naquela ocasião, ao recebê-lo em Palácio, chegou a oferecer-lhe
antecipadamente a cadeira presidencial. Era o sociólogo sucedido pelo operário,
ofício que Lula já não exercia há mais de duas décadas. As cenas da transmissão
da faixa presidencial, encontráveis no Youtube, mostram um Fernando Henrique
ainda mais deslumbrado que seu sucessor.
Lula, na
ocasião, disse-lhe: “Fernando, aqui você terá sempre um amigo”. No dia
seguinte, cessou o entusiasmo: o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, em
sua primeira entrevista, mencionava a “herança maldita” do governo anterior,
frase repetida como mantra até os dias de hoje.
E o
“amigo” não mais pouparia seu antecessor, por quem cultiva freudiana
hostilidade. A erudição, ao que parece, o incomoda, embora a vida lhe tenha
proporcionado meios bem mais abundantes de obtê-la que a outros grandes
personagens da cultura brasileira, de origem tão modesta quanto a sua, como
Machado de Assis, Gonçalves Dias e Cruz e Souza, mestiços que, em plena
escravidão, ascenderam ao topo da vida intelectual do país.
O mito
Lula começou ainda na década dos 70, em pleno governo militar – e contou com a
cumplicidade do próprio regime, que, por ironia, o viu como peça útil na
desconstrução da esquerda, abrigada no velho MDB e em vias de defenestrar
eleitoralmente o partido governista, a Arena. O regime extinguiu
casuisticamente o bipartidarismo, de modo a esvaziar a frente oposicionista.
A
frente, em que a esquerda tinha protagonismo, entendia que não era oportuno o
surgimento de um partido de base sindical, que a esvaziaria, diluindo os votos
contrários ao regime. Lula foi peça-chave nesse processo, concebido pelo
general Golbery do Couto e Silva, estrategista político do governo militar.
Há
detalhes reveladores em pelo menos dois livros recentes: “O que sei de Lula”,
de José Nêumanne Pinto, que cobriu as greves do ABC pelo Jornal do Brasil
naquele período, e com ele conviveu; e “Assassinato de Reputações”, de Romeu
Tuma Jr., cujo pai, o falecido delegado Romeu Tuma, então chefe do Dops, foi
carcereiro de Lula, no curto período em que esteve preso.
Tuma e
Nêumanne convergem num ponto: Lula foi informante do Dops, o que lhe facilitou
a construção do PT, a cujo projeto se agregariam duas vertentes fundamentais -
a esquerda universitária paulista e o clero católico da Teologia da Libertação.
Essa
gênese explica a trajetória vitoriosa do partido: o clero proporcionou-lhe a
capilaridade das comunidades eclesiais de base e os acadêmicos prestígio e
acesso à grande mídia.
A ambos,
o PT retribuiu com Lula, o símbolo proletário de que careciam para forjar o
primeiro líder de massas que a esquerda brasileira produziu e que a levaria,
enfim, a vencer eleições presidenciais. Deu certo – e deu errado.
Lula
chegou lá, mas corre o risco de concluir sua trajetória na cadeia. Os acertos de
seu primeiro governo derivam da rara conjunção de uma bonança econômica
internacional com os ajustes decorrentes do Plano Real. Finda a bonança e
desfeitos os ajustes, restou a evidência de que não havia (nunca houve) um
projeto de governo – e tão somente um projeto de poder.
A Lava
Jato, ao tempo em que reduz Lula a seu exato tamanho, político e moral – e, ao
que se sabe, há ainda muito a vir à tona -, mostra o que fez, à frente do PT e
do país, para que esse projeto se consolidasse e o eternizasse como pai dos
pobres – uma caricatura de Vargas, com mais dinheiro e menos ideias.
De gênio
político, beneficiário de uma conjuntura que desperdiçou, lega à posteridade
sua grande obra: Dilma Roussef, personagem patética que tirou do anonimato para
compor um dos momentos mais trágicos da história da República.
O
historiador do futuro terá o desafio de decifrar o que levou a inteligência do
país – cujo dever de ofício é antever e evitar tais desvios - a embarcar num
projeto suicida, a serviço da estupidez, não hesitando em satanizar os que a
ele se opõem.
Ruy Fabiano, Blog do Noblat, O Globo 26/3/2016.
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