sábado, 22 de janeiro de 2011

O Legado de Lula

Percival Puggina
Acabou! Não há bem que sempre dure (na perspectiva dos 87% que gostaram), nem mal que não acabe (segundo a ótica dos 13% descontentes). Faço parte do pequeno grupo que não se deixa seduzir por conversa fiada, publicidade enganosa e não sente atração pelos salões e cofres do poder.

Lula chega ao fim de seu mandato em meio a um paradoxo que cobra explicações: a política e os que a ela se dedicam despencaram na confiança popular para um índice de rejeição de 92%! Ora, como entender que os políticos valham tão pouco perante a opinião pública enquanto o grande senhor, o chefe, o mandante, o comandante da política, surfa nas ondas de uma popularidade messiânica? Ouço miados nessa tuba. Como pode? Quanto mais crescia a popularidade do presidente mais decrescia o prestígio da política! E ele nada tem a ver? Chefiou durante quase uma década o Estado, o governo, a administração, uma fornida maioria parlamentar, o numeroso bloco de partidos integrantes de sua base de apoio, nomeou 8 dos 11 ministros do STF, estendeu seu braço protetor sobre as piores figuras da cena nacional e é a virgem do lupanar?

Eu aprecio os governantes realistas. Sei que o realismo se inclui entre as características de todos os estadistas. Seja como homem do governo, seja como chefe de Estado, o estadista lida com os fatos. Ideais elevados e pés no chão. Causas e consequências, problemas e soluções. Realismo. Isso me agrada. Mas há um realismo cínico, desprovido de caráter, que desconhece limites éticos, que se abraça com o demônio se ele puder ser útil. A história está cheia de líderes assim e apenas os olfatos mais sensíveis parecem capazes de perceber o cheiro de enxofre que exalam. Há uma relação de causa e efeito entre a degradação da política brasileira e a ação do presidente Lula. Ele a deteriorou e comprometeu a democracia através do aparelhamento de tudo, da cooptação, da compra de votos com favores, do fracionamento e da descaracterização dos partidos. Assim como atuam os desmanches de automóveis, assim operou a política presidencial com os pedaços dos partidos nacionais, comprados das fontes mais suspeitas e pelos piores meios.

Quer dizer, senhores e senhoras arrebatados pela retórica lulista, que a democracia perdeu importância e pode ser uma coisa qualquer, apoiada por qualquer arremedo de política? Não se exige mais, de quem governa, um padrão mínimo de dignidade? De coerência e respeito? Não! Pelo jeito, basta encher o bolso dos ricos e distribuir esmolas aos pobres para que surja um novo São Francisco em Garanhuns.

Ah, Puggina! Mas com ele a economia cresceu, o número de miseráveis diminuiu e se realizaram obras importantes. Vá que seja. Mas convenhamos: era preciso muita incompetência para que a economia ficasse travada em meio a um ciclo mundial extremamente favorável. Pergunto: não estavam diligentemente postas pelos antecessores as condições (privatizações, estabilidade monetária e jurídica, integração ao comércio mundial, credibilidade externa, responsabilidade fiscal e estímulo ao agronegócio)? Estavam, sim. Faltava o que Lula teve a partir de 2005: dinheiro jorrando, comprador e investidor, no mercado internacional. E ainda assim, entre 2002 e 2009, o crescimento do PIB per capita do Brasil teve um desempenho medíocre comparado com outros emergentes e, mesmo, com a maior parte dos países da América Latina.

O Partido dos Trabalhadores se construiu mediante três estratégias convergentes. Primeiro, a rigorosa adoção da cartilha gramsciana, assenhoreando-se dos meios de formação da cultura nacional, sem esquecer-se de qualquer deles - igrejas, sindicatos, movimentos sociais, universidades, meios de comunicação, material didático, música popular. Segundo, combatendo tudo, mas tudo mesmo, que os governos anteriores buscavam implementar como condição para que o país retomasse o crescimento: Plano Real, abertura da economia, privatizações, cumprimento de contratos, pagamento da dívida, responsabilidade fiscal, busca de superávits, agronegócio e Proer. Tudo era denunciado como maligno, perverso, antinacional, corrupto. Terceiro, destruindo de modo sistemático a imagem de quem se interpusesse no seu caminho para o poder, até restar, do imaginário de muitos, como a grande reserva moral da pátria. Dois anos no poder bastaram para que os véus do templo se rasgassem de alto abaixo e os muitos petistas bem intencionados arrancassem os cabelos num maremoto de escândalos.

Somente alguém totalmente irresponsável ou com desmedida ganância pelo poder haveria de desejar para a nação um governo social e economicamente desastroso. Não é e nunca foi meu caso. Não escrevo estas linhas para desconsiderar o que andou bem no governo do presidente Lula. Mas não posso deixar de expor o que vi - e como vi! - de sórdido e prejudicial em seu modo de fazer política. Para concluir, temperando os exageros de uma publicidade que custou ao país, na média dos últimos três anos, R$ 900 milhões por ano, considero sensata a observação a seguir. Quando Lula assumiu, em 2003, os principais problemas do Brasil situavam-se nas áreas de Educação, Saúde e Segurança Pública. Passados oito anos, haverá quem tenha coragem de afirmar que não persistem os problemas da Educação e que não se agravaram os da Saúde e da Segurança Pública? Haverá 87% de brasileiros dispostos a se declarar satisfeitos com a situação nacional nesses três pilares de uma vida social digna?

Percival Puggina (66) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Quando Dois e Dois São Quatro

Ferreira Gullar

O tempo se encarregará de pôr as coisas no lugar.
O presidente Médici também obteve 82% de aprovação.

TALVEZ SEJA esta a última vez que escreva sobre o cidadão Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente do Brasil. Com alívio o vi terminar o seu mandato, pois não terei mais que aturá-lo a esbravejar, dia e noite, na televisão, nem que ouvir coisas como esta: "Ele é tão inteligente que fala todas as línguas sem ter aprendido nenhuma". Pois é, pena que não fale tão bem português quanto fala russo.

É verdade que tivemos, ainda, que aturá-lo nos três últimos dias do mandato, quando "inaugurou" obras inexistentes e fez tudo para ofuscar a presidente que chegava.

Depois de passar a faixa, foi para um comício em São Bernardo, onde, até as 23h, continuava berrando no palanque, do qual nunca saíra desde 2002.

Aproveitou as últimas chances para exibir toda a sua pobreza intelectual, dizendo-se feliz por deixar o governo no momento em que os Estados Unidos, a Europa e o Japão estão em crise.
Alguém precisa alertá-lo para o fato de que a crise, naqueles países, atinge, sobretudo, os trabalhadores. Destituído de senso crítico, atribui a si mesmo ("um torneiro mecânico") o mérito de ter evitado que a crise atingisse o Brasil. Sabe que é mentira mas o diz porque confia no que a maioria da população, desinformada, acreditará.

Isso dá para entender, mas e aqueles que, sem viverem do Bolsa Família nem do empréstimo consignado, veem nele um estadista exemplar, que mudou o Brasil? É incontestável que, durante o seu governo, a economia se expandiu e muita gente pobre melhorou de vida. Mas foi apenas porque ele o quis, ou também porque as condições econômicas o permitiram?

Vamos aos fatos: até a criação do Plano Real, a economia brasileira sofria de inflação crônica, que consumia os salários. Qual foi a atitude de Lula ante o Plano Real? Combateu-o ferozmente, afirmando que se tratava de uma medida eleitoreira para durar três meses.

À outra medida, que veio consolidar o equilíbrio de nossa economia, a Lei de Responsabilidade Fiscal, Lula e seu partido se opuseram radicalmente, a ponto de entrarem com uma ação no Supremo para revogá-la. Do mesmo modo, Lula se opôs à política de juros do Banco Central e ao superávit primário, providências que complementaram o combate à inflação e garantiram o equilíbrio econômico. Essas medidas, sim, mudaram o Brasil, preservando o valor do salário e conquistando a confiança internacional.

Lembro-me do tempo em que o preço do pão e do leite subia de três em três dias. Quem tinha grana, aplicava-a no overnight e enriquecia; quem vivia de salário comia menos a cada semana.
Se dependesse de Lula e seu partido, nenhuma daquelas medidas teria sido aplicada, e o Brasil -que ele viria a presidir- seria o da inflação galopante e do desequilíbrio financeiro. Teria, então, achado fácil governar?

Após três tentativas frustradas de eleger-se presidente, abandonou o discurso radical e virou Lulinha paz e amor. Ao deixar o governo, com mais de 80% de aprovação, afirmou que "é fácil governar o Brasil, basta fazer o óbvio". Claro, quem encontra a comida pronta e a mesa posta, é só sentar-se e comer o almoço que os outros prepararam.

A verdade é que Lula não introduziu nenhuma reforma na estrutura econômica e social do país, mas teve o bom senso de dar prosseguimento ao que os governos anteriores implantaram. A melhoria da sociedade é um processo longo, nenhum governo faz tudo. Inteligente, mas avesso aos estudos, valeu-se de sua sagacidade, já que é impossível conhecer a fundo os problemas de um país sem ler um livro; quem os conhece apenas por ouvir dizer não pode governar.

Por isso acho que quem governou foi sua equipe técnica, não ele, que raramente parava em Brasília. Atuou como líder político, não como governante, e, se Dilma fizer certas mudanças, pouco lhe importará, pois nem sabe ao certo do que se trata. Para fugir a perguntas embaraçosas, jamais deu uma entrevista coletiva. Afinal, ninguém, honestamente, acredita que com programas assistencialistas e aumento do salário mínimo se muda o Brasil.

O tempo se encarregará de pôr as coisas em seu devido lugar. O presidente Emílio Garrastazu Médici também obteve, em 1974, 82% de aprovação.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Primus Inter Pares

Primus inter pares
EDITORIAL
O Estado de S.Paulo - 09/01/11

Luis Inácio Lula da Silva não precisou nem de uma semana para demonstrar ao país e ao mundo que, apesar de alardear ser uma pessoa de origem humilde, um homem do povo igual a todo mundo, julga-se, na verdade, no mínimo, um legítimo primus inter pares, o primeiro entre iguais, merecedor, portanto, de privilégios e regalias especiais. O ex-presidente está realmente convencido, do alto de seus oitenta e tanto por cento de aprovação popular, de que conquistou a condição incontrastável de líder supremo dos brasileiros. Alguém que tudo pode, a quem tudo é permitido.

Qualquer homem público com algum sentido de decoro, com alguma noção de limites de comportamento, com algum pudor no trato com o bem comum, jamais se teria permitido dar os maus exemplos protagonizados por Lula na sua penosa transição para a condição de ex: o uso de dependências das Forças Armadas para gozar, com a família, de alguns dias de lazer à beira-mar e a concessão a dois filhos seus, pelo Itamaraty, nos últimos dias de dezembro, de passaportes diplomáticos válidos por quatro anos.

Dois ou três dias depois de ter passado a faixa presidencial a sua sucessora, Lula e família desembarcaram no aprazível recanto do Forte dos Andradas, dependência do Exército situada numa das pontas da praia do Tombo, no Guarujá. Como presidente, ele já havia estado lá um par de vezes, para curtos períodos de descanso. A reação geral foi imediata: um ex-presidente tem direito a essa regalia? Consultado o Ministério da Defesa, o ministro Nelson Jobim mandou dizer que Lula estava no Forte dos Andradas como seu convidado. Então, é isso.

Mais ou menos ao mesmo tempo vazou a notícia de que, ao apagar das luzes de 2010, e do mandato de Lula, seus filhos Marcos Cláudio, 39, e Luiz Cláudio, 25, e ainda um neto, foram contemplados pelo Itamaraty com a concessão de passaportes diplomáticos. Esse é um privilégio a que têm direito algumas altas autoridades públicas e seus dependentes, desde que tenham até 21 anos de idade, ou sejam portadores de algum tipo de deficiência. Como nenhum dos dois filhos do ex-presidente se enquadra nessas condições, questionado pelos jornalistas o Itamaraty explicou que a concessão foi autorizada pelo ex-chanceler Celso Amorim "em caráter excepcional", atendendo a "interesse do país". Ninguém se deu ao trabalho de explicar que "interesse" seria esse, mas fontes da Chancelaria revelaram que o pedido dos passaportes fora feito pelo então presidente diretamente ao ministro, poucos dias antes.

Por que não? Que há de mal nisso? Afinal, Lula não pode? Que pode, pode. Está visto. Mas não deve. E quem não entende por que, não tem o direito de reclamar da lassidão ética que corrompe a atividade política em todos os níveis de governo e dos enormes prejuízos que isso acaba significando para a cidadania. O comportamento de Lula é um péssimo exemplo para o país por pelo menos uma boa razão, além da óbvia questão ética: eterno defensor e protetor dos fracos e oprimidos, o combate aos privilégios dos poderosos sempre foi bandeira política de Lula e do PT. É difícil de justificar, portanto, que o ex-metalúrgico, que hoje tem condições financeiras para pagar do próprio bolso uma semana de férias para toda a família em qualquer resort elegante do Brasil ou do mundo, inclusive nas condições de segurança e privacidade a que, estas sim, ele e seus familiares têm todo o direito - se valha dos privilégios inerentes à Presidência da Republica depois de deixar o cargo. Só mesmo um desvio de conduta explica a tranquilidade com que, no caso das férias no forte, Lula botou na conta da viúva o custo do auto-outorgado privilégio.

O novo chanceler, Antonio Patriota, evitou diplomaticamente comentar a questão dos passaportes. Já o assessor para assuntos internacionais Marco Aurélio Garcia - uma das incômodas heranças que Lula deixou para Dilma -, com o habitual sarcasmo, e à falta de melhor argumento, classificou o assunto como "de uma irrelevância absoluta".

Se esse é o saldo de uma semana de Lula sem a faixa presidencial, não é difícil imaginar o que ainda está por vir. 

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A Novíssima Elite

Eliane Catanhêde 
Tem toda a razão Fernanda Torres ao dizer que “ser considerado parte da elite virou ofensa das mais graves” e em seguida perguntar: “Mas quem é a elite?”. Os bancos, que nunca lucraram tanto, as empreiteiras, eternamente gratas a Lula, a oligarquia, recheada de ministérios? Ou as levas de petistas em todos os escalões?
Há inclusive a elite enxovalhada por Lula e pelos lulistas radicais sempre que lhes falta explicação para alguma peraltice tipo mensalão. Aí, a elite somos nós, que damos um duro danado, ganhamos a vida honestamente, temos apreço aos princípios e exigimos moralidade e exemplo dos governantes.
Hoje, nada encarna melhor a neoelite que o time de Ronaldinhos de Lula -os Lulinhas. Os meninos são uns craques. Entraram pobres em 2003 e saem com seis empresas em 2011, um deles vivendo em apartamento de R$ 12 mil mensais pagos por empresário com contratos, ora, ora, com o governo do pai.
Não se pode discordar de Nelson Jobim quando ele diz que é “ridícula” a crítica a Lula por usar dependências militares para veraneio depois da Presidência. Também não é totalmente absurda a fala de Marco Aurélio Garcia de que um passaportezinho diplomático a mais ou a menos não faz mal a ninguém, referindo-se ao passaporte exclusivo de autoridades que Lulinhas sacaram no último dia do governo.
São, sim, coisas menores. O problema é a cultura, a soma do veraneio, dos passaportes, da Gamecorp, dos padrinhos, dos atos assinados à sombra, das empresas, do aluguel pago pelo amigo. O resultado é que Lula se sente dono do Brasil, acha que os filhos têm de aproveitar a “oportunidade” e desconsidera o exemplo que ele dá à nação como mito, como ídolo que é.
Se o presidente pode, a ministra da Casa Civil pode, o amigão Sarney pode, todo mundo pode. É educativo. Ou melhor, deseducativo. Nunca antes neste país se viu uma herança tão maldita.

sábado, 8 de janeiro de 2011

FROUXIDÃO ÉTICA

Editorial - Diário Catarinense, 8/1/2011

Pode ser legal que suplentes de deputados e senadores assumam cargos no mês de recesso e desfrutem de todas as benesses previstas, sem oferecer qualquer retribuição à nação. Mas é gritantemente imoral. Pode ser legal que os filhos do presidente Lula aproveitem-se de uma brecha na regra dos passaportes diplomáticos para obter a vantagem, mas é obviamente imoral. Pode ser compreensível que a presidente Dilma Rousseff mantenha relações de amizade com sua ex-auxiliar Erenice Guerra, demitida da Casa Civil durante a campanha eleitoral por chancelar um esquema de propina comandado por seu filho, mas é, no mínimo, chocante para os brasileiros que ela tenha sido convidada para a fila de abraços na posse da nova presidente da República.

Este conjunto de fatos forma apenas um dos murais de exemplos da frouxidão ética que atinge todos os poderes da República e provoca indignação nos cidadãos. No caso dos chamados “senadores de verão”, que receberão mais de R$ 100 mil para trabalhar por um mês, nenhum argumento é capaz de sustentar que tal cifra seja razoável. São parlamentares que assumirão um mandato-tampão, pela ausência dos titulares, e desfrutarão de todos os benefícios e mordomias do Congresso, como auxílio-moradia, verbas para gastar em seus estados de origem e mais R$ 23 mil em passagens aéreas, além dos salários. Por que esses congressistas e outros deputados que poderão desfrutar das mesmas concessões recebem tantas vantagens para permanecer por apenas um mês em Brasília? Porque, responderão eles mesmos, isso é legal.

É uma situação exemplar em que legalidade e moralidade se distanciam. Também pode ser sustentada juridicamente, com base em interpretações nebulosas de normas e leis, a concessão de passaportes diplomáticos a filhos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas não há como sustentar, do ponto de vista da correção de condutas, que familiares do ex-governante reúnam condições para merecer tratamento privilegiado. Configura-se aqui a usurpação de um benefício para que parentes de um ex-presidente possam circular pelo mundo com a mesma desenvoltura de diplomatas e ministros das altas cortes de Justiça. Há nessas situações uma clara manifestação de indiferença dos protagonistas com a justa reação a tantas afrontas.

A presença da senhora Erenice Guerra na cerimônia de posse da presidente Dilma Rousseff não se insere em nenhum caso em que a discussão se dá em torno de controvérsias legais. O que se viu, com a aparição da ex-ministra, foi constrangedor. A presença da ex-ministra da Casa Civil foi, no mínimo, embaraçosa numa cerimônia que deveria ser marcada, prioritariamente, pelo fato histórico da ascensão de uma mulher à chefia da nação.

Também é, no mínimo, desconfortável saber que outro denunciado por irregularidades, o ex-ministro José Dirceu, continua exercendo influência no governo, com aconselhamentos, indicação de nomes e lobismo. E que o principal partido da base governista, o PMDB, pratique o mais condenável exercício da política, a barganha que envolve apoio em troca de cargos, sempre com a ameaça de represálias. Testemunha-se, num início de governo, fatos comprovadores de que mesmo as melhores expectativas não são suficientes para mudar comportamentos condenáveis no núcleo do poder.

sábado, 1 de janeiro de 2011

Lula tem legado importante, mas deixa atrás herança maldita


Ricardo Setti
O presidente Lula encerra o mandato com uma decisão vergonhosa — a de não extraditar o terrorista e assassino Cesare Battisti para a Itália, como mandaria a legislação, o bom senso, o sentimento de justiça e as relações com um país amigo.
É como um escultor que dá seu toque final a uma obra. No caso, uma obra que o presidente parece ter perseguido com obstinação — a permanente tentativa de desmoralização das instituições. É esta a herança maldita que passará à frente, hoje, à presidente eleita, Dilma Rousseff.
Lula deixa um legado positivo em realizações, que não se pode negar: a manutenção da estabilidade econômica que herdou dos antecessores Itamar Franco (1992-1995) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), na qual se baseou o grande crescimento do PIB e a formidável geração de empregos ocorridos em sua gestão, e, entre outros aspectos positivos, a marcante distribuição de renda, também estribada na “rede de proteção social” do antecessor FHC, que seu governo ampliou e aprofundou.
Em compensação, em matéria de herança maldita, o presidente que hoje deixa o Planalto…
* Viu seu governo ser tisnado por escândalos nos Correios, na compra de ambulâncias, na montagem de dossiês fajutos para prejudicar adversários, na transformação da Casa Civil em balcão de negócios.
* Desmoralizou o quanto pôde o Congresso Nacional, por meio de seu então braço direito, o chefe da Casa Civil, José Dirceu, que edificou um esquema de compra de apoio parlamentar, o mensalão, qualificado pelo procurador-geral da República como “formação de quadrilha”.
* Silenciou espantosamente diante da explosão do mensalão, para se pronunciar tardiamente dizendo-se “traído”, sem jamais apontar quem o traiu e por quê.
* Como parte do mesmo processo, fez composições com qualquer grupo político disposto a trocar apoio parlamentar por benesses governamentais, “não importando o quanto de incoerência essas novas alianças pudessem significar diante do que propunha, no passado, a aguerrida ação oposicionista de Lula e de seu partido na defesa intransigente dos mais elevados valores éticos na política”, como brilhantemente recordou o Estadão em editorial de 9 de setembro do ano passado. No saco de gatos governista o antes purista PT passou a conviver com o que há de pior na política brasileira, gente como José Sarney, Jader Barbalho, Renan Calheiros, Paulo Maluf e Fernando Collor.
* Envergonhou os brasileiros de bem ao comparar com bandidos comuns trancafiados em prisões brasileiras os dissidentes da ditadura cubana, e confraternizando com o ditador Raúl Castro no exato momento em que um deles morria em consequência de uma greve de fome.
* Envergonhou os brasileiros de bem ao estreitar laços com regimes ditatoriais, como os de Cuba ou do tenebroso Irã, ou com caudilhos autoritários como o venezuelano Hugo Chávez, e concordar em que o governo se abstivesse sistematicamente na ONU de condenar as violações de direitos humanos nesses países e em outros como a China, o Sudão e a Síria, aliando-se, na organização internacional, ao que há de pior em matéria de regimes autoritários.
* Desmoralizou as agências reguladoras, que deveriam ser órgãos técnicos e apartidários, para normatizar e fiscalizar áreas fundamentais da economia e da vida do país como o petróleo, as telecomunicações, a saúde pública ou a aviação, loteando-as entre políticos, cortando sua autonomia e reduzindo seus recursos no Orçamento.
* Desmoralizou o Tribunal Superior Eleitoral, zombando em público das sucessivas multas e advertências que recebeu por violar a lei ao fazer campanha para sua candidata à Presidência, Dilma Rousseff, em horário de trabalho e utilizando espaços e outros recursos públicos.
* Desmoralizou o Tribunal de Contas da União, ao apontá-lo seguidamente como entrave à execução de obras públicas nas quais a corte detectou problemas, e mandando seguir obras cuja paralisação havia sido determinada pelo TCU.
* Desmoralizou uma instituição que por décadas figurava entre as mais confiáveis entre os brasileiros, os Correios, ao aparelhá-los politicamente e deixar que o que antes era um centro de excelência em ninho de corrupção.
* Desestimulou os brasileiros que se esforçam por estudar e avançar em seu progresso educacional, ao passar invariavelmente a impressão de orgulhar-se de não possuir um diploma universitário e de, mesmo podendo, não ter estudado além do ensino elementar.
* Desmoralizou com frequência a majestade do próprio cargo, transformando a figura do presidente em palanqueiro vulgar, encantado pela própria voz, proferindo uma catarata diária de discursos e frequentes e constrangedores disparates, que dividiu o país entre “eles” e “nós”, falou em “extirpar” um partido político legítimo, o DEM, e zombou do candidato da oposição à Presidência, José Serra (PSDB), quando este se viu envolvido em incidente provocado por baderneiros no Rio de Janeiro.
* Fez o possível para desmoralizar a História, ao martelar em seus discursos e, indireta e insidiosamente, na caríssima propaganda de seu governo, que o Brasil começou com sua chegada ao Planalto, há oito anos, quando “os brasileiros se reencontraram com o Brasil e consigo mesmos” — desconsiderando e desrespeitando o trabalho de antecessores, principalmente FHC, e agindo como se o que a propaganda oficial chama de “reencontros” não ocorresse em surtos desde, pelo menos, a Inconfidência Mineira (1789). E depois passando pela Independência (1822), a República (1889) e, mais recentemente, pelos anos JK (1955-1961), as esperanças suscitadas com a eleição de Jânio Quadros (1961), o “Brasil Grande” da ditadura militar, o extraordinário movimento das Diretas-Já (1983-1984), o surto de civismo que significou a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, em janeiro de 1985, e a comoção gigantesca que acompanhou sua morte, em abril do mesmo ano, o delírio otimista do Plano Cruzado (1986), o apoio ao Plano Real (1994) e a eleição em primeiro turno de FHC (ainda em 1994).
Nesse sentido, não importam seus índices de popularidade: Lula deixa uma herança maldita.
E já vai tarde.
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