J. R. Guzzo
O Brasil
pode estar ganhando muito mais do que perdeu com a descida da Petrobras aos
nove círculos do inferno para onde foi arrastada durante os três últimos
governos da República. Nunca se roubou tanto da brava gente brasileira, embora
se tenha roubado sempre – e provavelmente se continuará roubando enquanto o
país, na prática, for propriedade do “Estado” e obedecer à sua regra número 1,
pela qual é obrigatório, para quem quer produzir alguma coisa, pedir licença a
quem não produz nada.
Mas há
sinais concretos de que o espetacular surto de corrupção dos últimos anos, quando
nossos atuais governantes decidiram transformar o uso privado do patrimônio
público em programa, método e sistema de administração, está oferecendo uma
oportunidade inédita ao Brasil do futuro – a de deixá-lo mais resistente do que
jamais foi às epidemias de criminalidade oficial causadas pelos que mandam no
governo, dentro e em volta dele, e que agora chegaram ao seu grau de
intensidade máxima.
Essa
recompensa será a passagem do país a uma situação até agora praticamente
desconhecida na história brasileira: a de funcionamento pleno de um estado de
direito no território nacional. O trabalho para isso está sendo feito numa
modesta jurisdição local, a de Curitiba, pelo juiz Sérgio Moro, titular da 13ª
Vara da Justiça Federal, pelo Ministério Público Federal e pela Polícia
Federal. Ninguém está dizendo aqui que o Brasil perdeu pouco, porque a verdade
é que perdeu muito.
Provavelmente nunca se saberá ao certo – a conta começa num
número mínimo de 6 bilhões de reais, estimativa oficial da própria Petrobras para
o prejuízo sofrido com esse redemoinho de corrupção que a empurrou para o
precipício, e vai até cifras não mapeadas pela aritmética comum
.
Mas, por
maior que seja a perda, sempre será apenas dinheiro – e a sabedoria popular diz
que tudo o que pode ser pago com dinheiro é barato. Caras, mesmo, são aquelas
coisas que o dinheiro não consegue comprar. Uma das mais preciosas é a
segurança trazida pelos regimes em que o cidadão vive, no dia a dia da vida
real, sob o comando da lei. Não é possível haver civilização se não há
estabilidade, e não é possível haver estabilidade sem um sistema judicial que
funcione com clareza, para todos e durante o tempo inteiro. Onde a aplicação da
lei é incerta, não há lei. Onde não há lei, não pode haver liberdades públicas
ou individuais, nem igualdade entre as pessoas, nem proteção verdadeira aos
direitos de ninguém; não pode haver democracia.
O esforço
do juiz Moro no processo do petrolão, junto com os procuradores federais e os
agentes da PF, está colocando a sociedade brasileira sob o império da lei ─ the
rule of law, como se diz no direito público dos Estados Unidos e da Inglaterra.
Isso não tem preço. A força que realmente sustenta os procedimentos da Justiça
Federal na Operação Lava-Jato é a obediência permanente à letra da lei por
parte dos responsáveis pelo processo. Não adianta nada buscar a justiça se não
há nessa busca o respeito às leis em vigor no país. Elas são as únicas que
existem, e é com elas que o Poder Judiciário tem de trabalhar; combater a
impunidade não autoriza ninguém a passar por cima do direito de defesa, da
obrigação de provar claramente cada acusação feita e de qualquer regra escrita
nos códigos da Justiça penal.
Agir dentro
da lei – é o que o Judiciário federal está fazendo, e é por isso, justamente, que
sua conduta está sendo tão decisiva para o avanço do estado de direito no
Brasil de hoje. Os fatos, aí, são perfeitamente claros. Todas as decisões do
juiz Moro, sem nenhuma exceção, estão sujeitas ao julgamento de tribunais que
ficam acima dele; os advogados dos acusados têm o direito de recorrer a essas
autoridades superiores contra qualquer dos seus despachos, e vêm fazendo isso
desde que o processo começou. Em praticamente todos esses recursos as decisões
de Moro foram confirmadas.
Seu
trabalho está sendo vigiado o tempo todo pelos 27 desembargadores das oito
turmas do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com sede em Porto Alegre,
mais os 33 ministros do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, e, no fim da
linha, os onze ministros do Supremo Tribunal Federal. Além disso, ele despacha
sob o olhar direto dos onze procuradores federais e dez delegados da PF, pelo
menos, que dão expediente na Operação Lava-Jato ─ ao todo, contando com ele
próprio, um exército de 93 pessoas. O que mais estaria faltando?
O processo
do petrolão, na verdade, é o exato contrário do que têm afirmado desde o começo
muitos dos advogados que lideram a defesa – mais, naturalmente, o governo e
todo o seu sistema de apoio. Sua ideia-mãe, com variações aqui e ali, é que
Moro, o Ministério Público e a Polícia Federal estão criando um “regime de
exceção” no Brasil, um “estado policial” que nega o direito de defesa, persegue
cidadãos sem culpa formada, age com crueldade e prepara um golpe para a “volta
da ditadura”. Estariam mancomunados para tirar a liberdade de empreiteiros de
obras, diretores da Petrobras, doleiros, o tesoureiro nacional do PT e quem
mais estiver sendo investigado por corrupção na Justiça Federal do Paraná. Como
assim? Ninguém explica, pois não dá para explicar como seria possível montar
uma conspiração secreta com a participação de quase 100 pessoas sem que ninguém
falasse nada.
É
incompreensível, também, alegar arbitrariedade, violência contra os acusados ou
descaso com a produção de provas quando nada menos que 28 cidadãos, todos
altamente postados na vida, concordaram até agora, com a plena assistência de
seus advogados, em confessar suas culpas, devolver dinheiro ganho ilegalmente e
denunciar cumplicidades nos delitos que praticaram. Réus já receberam sentenças
das quais não vão apelar. Mais: a “delação premiada”, que levou os envolvidos a
colaborar com a Justiça para aliviar suas penas, só existe porque foi criada
por lei. Não é uma lei da “ditadura” ou do ex-presidente Fernando Henrique – é
a Lei 12850, sancionada em 2013 por ninguém menos que a própria presidente
Dilma Rousseff, que ainda na campanha eleitoral do ano passado a apresentava
como uma das suas grandes realizações e hoje se diz indignada com ela.
Uma
discreta informação surgida no noticiário recente talvez seja a comprovação
mais luminosa, pois também é a mais simples, da mudança real que o avanço do
estado de direito está produzindo no Brasil. O empresário Emílio Odebrecht,
segundo a notícia, queixou-se aos ex-presidentes Lula e Fernando Henrique, em
conversas particulares, por não estar conseguindo fazer nada pela libertação de
seu filho Marcelo, acusado de corrupção na Petrobras e preso há dois meses em
Curitiba. Lula e FHC disseram-lhe palavras de consolo – e isso foi tudo que
puderam fazer. Não é preciso pensar mais do que dois minutos para ver que a
ação da Justiça está fazendo aparecer um país que jamais existiu antes por
aqui.
A Odebrecht
é o quarto maior grupo empresarial do Brasil; faturou perto de 34 bilhões de
dólares em 2014, emprega cerca de 170.000 pessoas diretamente e influi nos
negócios de centenas de outras empresas. Desde quando um dos empresários mais
potentes do Brasil, íntimo do primeiríssimo escalão do poder, fala com dois
ex-presidentes da República e não consegue tirar o próprio filho da cadeia? Não
é assim que este país vem funcionando há 500 anos. Temos leis que não acabam
mais – mas para que servem se não são aplicadas sempre, por igual e para todo
mundo? A Rússia comunista também tinha belíssimas leis – previam até a liberdade
de imprensa, o voto livre e a independência de poderes. E daí? Lei não é
justiça.
Só poderá
haver esperança de uma sociedade justa se estiver em funcionamento genuíno um
sistema judiciário independente, previsível e capaz de aplicar a lei sempre da
mesma maneira – e em que os donos do poder não possam demitir os juízes que os
incomodam. É o que está acontecendo no petrolão. Marcelo Odebrecht não está
preso porque é rico e preside uma empresa gigante. Está preso porque a Justiça,
com apoio em fatos, investiga quanto ele está devendo ao Código Penal.
O tiroteio
disparado contra Sérgio Moro é uma das mais agressivas campanhas em favor da
negação da Justiça que o Brasil já conheceu. É também a comprovação de quanto a
ideia de viver sob o império da lei é inaceitável para as forças que mandam na
vida pública brasileira. Trata-se do condomínio formado por coronéis da
política, que operam nas grandes capitais e andam de jatinho, mas continuam
dentro do seu carro de boi mental de sempre, por empresas que vivem de fazer
negócios com o governo e por toda a extensa população de parasitas cujo
bem-estar material depende, de um jeito ou de outro, da máquina pública. São
representados hoje, melhor do que nunca, pelo governo do PT, seu aliado, sócio,
protetor e protegido – e para manterem o fazendão que chamam de “Estado” estão
convencidos de que tudo serve.
Vale, por
exemplo, dizer que o combate à corrupção na Petrobras está fazendo o Brasil
perder “1% do PIB”, como descobriu a presidente Dilma. A Lava-Jato não pode
“paralisar” a economia brasileira, dizem lideranças do PT e do governo – por
essa maneira de ver as coisas, a economia só crescerá se a ladroagem estiver
liberada. A delação de um dos acusados, algum tempo atrás, foi vista como uma
manobra internacional para “prejudicar a viagem da presidente aos Estados
Unidos”. O ex-presidente Lula compara o combate judicial à corrupção com a
perseguição aos judeus na Alemanha nazista.
Vale tudo,
também, na tentativa permanente de denunciar o juiz, procuradores e policiais
que investigam o petrolão como delinquentes dispostos a violar a lei para
satisfazer a “opinião pública”. Personalidades tidas como juristas de elevado
saber mostram-se tão convencidas de suas próprias certezas que não pensam mais
direito no que estão falando. Uma delas, recentemente, sustentou que o juiz
Moro é “um cidadão do sul com volúpia para prender pessoas” – e que as
confissões dos acusados estão sendo feitas “sob tortura”.
No seu
entender, o sujeito que “está acostumado com um bom padrão de vida e é posto
numa sala que não tem nem privada”, como ocorre com os empreiteiros e barões da
Petrobras presos em Curitiba, “está sendo torturado”. Para aperfeiçoar seu
argumento, disse que um preso é um preso, e outro preso é outro preso. “Se você
viveu numa favela”, comparou, dá para aguentar uma cela miserável; com um
doutor já não é a mesma coisa. Que mais seria preciso para comprovar a angústia
do Brasil velho com a mudança ora em execução pela Justiça Federal?
O autor
desses pensamentos, enfim, parece ter falado por todos os que combatem os
processos do petrolão ao afirmar que “nem no tempo da ditadura” houve tanto
desrespeito à lei numa investigação criminal. É mesmo? Se os que dizem isso
tivessem um dia levado um bom inquérito policial-militar no lombo, notariam bem
depressa as diferenças entre uma época e outra; saberiam, também, que uma cela
no DOI-Codi não tem absolutamente nada a ver com o xadrez da PF de Curitiba.
É um bom
sinal para o Brasil que, após um ano inteiro de esforço, tenha dado resultado
zero a tentativa de demonstrar que não há corrupção no governo, ou só um
pouquinho, e que tudo não passa de uma armação contra os interesses populares.
A campanha fracassou porque sempre foi uma missão impossível – pretendeu
convencer a maioria da população a acreditar que os reis não estão nus, e essa
não é uma opção disponível. O trabalho do juiz Sérgio Moro está mais vivo hoje
do que estava quando começou. O estado de direito agradece.