A tarefa
para os brasileiros é se safar, política e democraticamente, do criador e da
criatura. É uma questão de sobrevivência
O Brasil
está numa encruzilhada histórica. Para onde ir? Na República Velha, com todos
os defeitos — que eram muitos —, a institucionalidade existente foi um anteparo
durante mais de quatro décadas ao caudilhismo. Os principais líderes do período
ficaram impossibilitados de exercer o poder à semelhança dos países platinos,
assolados por este fenômeno desde o processo independentista. Um fazedor de
presidentes, como o senador Pinheiro Machado, teve, se tanto, uma década de
efetivo poder e, mesmo assim, não conseguiu chegar ao Palácio do Catete.
Os
quinze anos do primeiro governo Getúlio Vargas se constituíram no primeiro
momento que uma liderança caudilhista teve efetiva presença na cena política
nacional. A ausência de liberdades durante mais de dez anos — excetuando o
breve período 1934-1937 — acabou facilitando a consolidação da figura de
Vargas, sem ter de travar um enfrentamento político com opositores devido à
enorme concentração de poderes nas suas mãos.
O breve
período democrático (1945-1964) acabou abrindo a possibilidade para a primeira
liderança política efetiva, resultado do livre jogo eleitoral. Juscelino
Kubitschek transformou seu quinquênio presidencial numa referência positiva de
autoridade, dialogando com a oposição, injetando o país de otimismo e obtendo
importantes vitórias no campo econômico.
O ciclo
militar impossibilitou o surgimento de lideranças castrenses em parte devido às
modificações adotadas, em 1965, que limitaram a permanência de oficiais em
postos de comando e no mesmo grau hierárquico. A grande figura civil que
emergiu do período foi Ulysses Guimarães, que, devido a diversas circunstâncias
políticas, teve de ceder o posto para Tancredo Neves, como candidato
oposicionista, em janeiro de 1985. A morte do presidente eleito e as particularidades
da Nova República não permitiram ao Dr. Ulysses reassumir o papel exercido nos
últimos anos do regime militar.
O
processo eleitoral de 1989 deu ao país a possibilidade de restabelecer a
democracia plena. Contudo, por decorrência de uma eleição solteira e do
desgaste da presidência Sarney, acabou abrindo, pela primeira vez, as portas do
Palácio do Planalto para dois candidatos antagônicos mas — paradoxalmente —
similares. Incorporaram o figurino caudilhista, o salvacionismo popular, que,
na República, ainda não tinha tido uma tradução tão perfeita como em Fernando
Collor e Lula.
O
impeachment acabou sinalizando a possibilidade de uma efetiva
institucionalização da estrutura fundada pela Constituição de 1988. A ascensão
de Itamar Franco ao governo, presidente sem carisma e nenhuma veleidade de
caudilho, permitiu que sua sucessão ocorresse sem traumas e dentro da ordem
constitucional. Fernando Henrique governou por oito anos e, na essência, de
forma muito parecida com a do seu antecessor.
O ponto
de ruptura ocorreu em 2002. A falta de compreensão da importância da eleição —
deu até a impressão que o presidente desejava o triunfo do opositor — levou à
vitória de Lula e do espírito caudilhista. Desde então a sua presença ofuscou,
inclusive, lideranças do seu partido. O país passou a girar em torno dele, um
caudilho de velho tipo, mesmo em plena vigência — suprema contradição! — da
mais democrática e aperfeiçoada das constituições brasileiras.
Enquanto
a economia dava sinais de vitalidade foi possível conciliar — na aparência — o
caudilhismo com a democracia. Na essência, como seria de se esperar, foram
solapados os fundamentos do Estado Democrático de Direito. A estruturação do
que foi definido, com propriedade, na Ação Penal 470 como um projeto criminoso
de poder, associou pela primeira vez na nossa história caudilhismo com um
sólido partido político, dando sentido único a uma anomalia, que foi ocupando
as estruturas de Estado.
A
passagem do poder do criador para a criatura — sem carisma e história — trouxe
mais um componente de crise. Que se agravou com as sérias dificuldades
econômicas manifestadas a partir de 2013. O sistema político-institucional foi
se esfarelando, não conseguindo dar respostas aos anseios da sociedade civil.
Vivemos
o momento mais difícil desde a redemocratização de 1985. Não sabemos para onde
ir. E o futuro próximo se avizinha cinzento. A pressão popular é desconsiderada
pelos donos do poder. A desmoralização das instituições é evidente. Dois chefes
de poderes — Dilma Rousseff e Ricardo Lewandowski — se encontraram em
território estrangeiro para discutir não se sabe o quê. Ministro é acusado de
chantagista cordial — ah, bons tempos do homem cordial de Sérgio Buarque de
Holanda — e nada acontece. O PT teve um tesoureiro condenado pelo Superior
Tribunal Federal por corrupção ativa e formação de quadrilha e seu sucessor,
desde abril, também está preso. Em que país do mundo democrático há um partido
no governo que tenha seus dois últimos tesoureiros presos?
Brasília
está desconectada do Brasil. A vida segue na Praça dos Três Poderes como se o
país vivesse no melhor dos mundos. A presidente diz que não vai cair com a
maior naturalidade. Porém, dificilmente vai comer o peru de Natal no Palácio do
Planalto. A gravidade da crise é tão grande que até seu criador está procurando
uma forma de se livrar da criatura. O caudilho, que destruiu as instituições de
Estado, tem plena consciência do significado negativo da permanência de Dilma
para seu projeto pessoal. A tarefa para os brasileiros é se safar — política e
democraticamente — tanto do criador, como da criatura. É uma questão de
sobrevivência.
Marco
Antonio Villa. Publicado no O Globo, 15/7/2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário