“O Brasil é
de uma fidelidade a si mesmo enorme. Muda para não mudar. É metade corrupção,
metade incompetência”. Esta frase do historiador Evaldo Cabral de Mello define
nossos principais problemas. Mas ele, que é um grande historiador, deve
concordar também que existem pessoas talentosas, grupos capazes, ilhas de
excelência no Brasil. Aqui no Rio aconteceu algo interessante. Liderado pela
professora Suzana Herculano-Houzel, um grupo de pesquisadores brasileiros fez
importante descoberta sobre o córtex cerebral.
O resultado
da pesquisa foi publicado na revista “Science”. O estudo brasileiro desfez um
mito sobre o córtex e sua relação com os neurônios. Um feito mundial. O grupo
liderado por Suzana, no entanto, trabalha numa universidade em crise e ela
colocou dinheiro do próprio bolso para comprar reagentes. Se quiser avançar em
sua pesquisa, o grupo talvez tenha de escolher o caminho do aeroporto. A ilha
de excelência corre o risco de naufragar no oceano de incompetência e corrupção.
O Brasil
subestima a ciência e a pesquisa. É uma escolha que nos distancia do mundo.
Deve haver mil razões para este fenômeno. Uma frase que ouvi na televisão
talvez dê uma pista: os asiáticos construíram fábricas, e os latino-americanos,
shoppings centers. De fato, muitas conquistas da ciência e da tecnologia
desembocam nas prateleiras das lojas. Mas esta não é uma escolha acertada para
o longo prazo. Falar em longo prazo no Brasil de hoje é quase heresia. Estamos
enredados nas armadilhas do cotidiano. A política é um nó, a própria presidente
evoca o seu impeachment e convida: venham me derrubar.
Não somos
Macondo, o território mítico criado por García Márquez, mas nossa política, às
vezes, se aproxima do realismo fantástico. Guardo alguns momentos na memória.
Ulysses Guimarães, certa vez, cumprimentou o corneteiro numa solenidade. Houve
um certo zunzum. Será que caducou, deixou de tomar o remédio diário? Mas eram
momentos líricos. E para dizer a verdade, entre tomar remédios e cumprimentar
corneteiros, talvez a última seja a solução mais branda. Esse lirismo já não
existia mais nas intempéries de Collor: eu tenho aquilo roxo, dizia ele num
acesso de arrogância.
Quando
Dilma começou aquela frase: precisamos comungar o milho com a mandioca, percebi
que estávamos vivendo mais um momento de realismo fantástico. No dia seguinte,
na rua, um homem me abordou e disse que a explicação estava na dieta que Dilma
faz para emagrecer.
Caetano
Veloso escreveu um verso: “esse papo já tá qualquer coisa/ você já tá pra lá de
Marrakesh”. No auge da crise, parece que dentro de Dilma mexe qualquer coisa
doida. Mexe qualquer coisa dentro: numa outra oportunidade, ela saudou o fogo e
a cooperação como as maiores criações tecnológicas da Humanidade. Pra lá de
Teerã.
O filósofo
inglês John Gray, que escreve interessantes ensaios, passou pelo Brasil e disse
sobre a Europa: é possivel viver sem esperar que o mundo necessariamente
melhore. Tudo bem. Nesse momento, no Brasil, estamos aprendendo a viver com a
certeza de que o mundo vai necessariamente piorar. Dilma fez preleções sobre o
fogo e a mandioca, mas é incapaz de dizer uma frase, ainda que não tenha muito
sentido, sobre a crise nas universidades. Ela usou o slogan “Pátria educadora”
como se usa um boné em dia de sol. Esqueceu no armário, com as outras
quinquilharias produzidas pelo marketing.
Berço da
filosofia ocidental, a Grécia passa por dificuldades. Entre o ajuste financeiro
e as últimas medidas de Dilma, sobretudo a de cobrir parte do salário para
evitar desemprego, há uma pequena contradição. Ela diz que será moleza
permanecer no poder. Acho que continua saudando a mandioca. Não tem base
política confiável, não consegue definir um ajuste e é cercada de problemas que
partem de três direções: TCU, pedaladas; TSE, caixa dois; Operação Lava Jato,
corrupção na Petrobras. Se ela conseguir superar esses problemas, com 9% de
aceitação popular, no auge de uma crise econômica que produz desemprego, perda
de renda, estarei saudando a mandioca.
Seria
preciso combinar o milho com a mandioca, levar ao fogo para cozinhar no
caldeirão a receita que salve o barco. No momento, ele navega rumo ao Triângulo
das Bermudas. A comandante e seus marujos podem sumir nele. O país é grande
demais para isso. O que sei é que esses tempos de incerteza nos atrasam. Não só
o que acontece na universidades é desolador. Muitos projetos estão paralisados
à espera de uma definição. Num país em que a presidente desafia a oposição a
derrubá-la, quem vai fazer planos para o futuro? Ela mesma nos convida a adiar
projetos e esperar o desfecho de seu mandato. Dilma é um manual ambulante da
inabilidade política. Sua capacidade de complicar as coisas talvez contribua
para uma saída mais rápida. Mas, ainda assim, vivemos num compasso de espera. É
o tipo de situação que não pode se prolongar. Sair do buraco em que nos meteram
é grande tarefa nacional.
Fernando Gabeira - O Globo, 12/07/2015
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