“Como vai
você/ assim como eu/ uma pessoa comum/ um filho de Deus/ nessa canoa furada/
remando contra a maré.” Esses versos de Rita Lee cantados por Marina Lima me
vêm à cabeça neste momento da crise brasileira. Uma canoa furada remando contra
a maré. Dois personagens centrais brigam pela imprensa. Dilma e Cunha estão
numa gangorra. Se um deles parar de repente, o outro voa pelos ares.
Dilma pensa
na queda de Cunha, ele pensa na queda dela. Nenhum dos dois parece capaz de
realizar esse feito. Para derrubar Dilma é preciso um processo conduzido por
alguém que não esteja envolvido no escândalo. Para derrubar Cunha é preciso um
tipo de pressão que seus oponentes não fazem.
Na queda de
Renan Calheiros, lembro-me bem de que ele não conseguia presidir sessões do
Congresso porque os opositores não deixavam. Não sei se isso é possível na
atual e sinistra correlação de forças na Câmara. No fundo, seria mais uma
paralisia num quadro de desalento e grandes dificuldades econômicas. Esse
impasse político faz da retomada do crescimento, ainda que em novas bases, uma
outra canoa furada. Com todos os personagens centrais, Renan incluído, tentando
se equilibrar, falta energia para pensar no país.
O projeto
de Joaquim Levy passa pela CPMF. Mais uma furada. O imposto não será aprovado
no Congresso, mesmo se usarem parte dele comprando deputados. Ninguém vende o
próprio pescoço num momento em que os eleitores estão atentos. Levy sempre
poderá buscar outros meios, como a Cide, de combustíveis, por exemplo. Mas,
derrotado com a CPMF, teria força para esse novo movimento? Além disso, há as
repercussões inflacionárias.
O ajuste
possível e necessário para avançar não tem chance de ser feito. O clima
político é de salve-se quem puder. Se fossem personagens de House of Cards, a
série de TV americana, até que seria divertido ver o desenrolar de seu destino.
Não canso
de lembrar: eles estão aqui, entre nós. Já vamos encolher este ano e em 2016. O
número de desempregados cresce e isso é um tema ofuscado pela briga lá em cima
da pirâmide.
Outro tema
que passa batido são os impactos econômicos do El Niño. As chuvas provocam grandes
estragos no Sul e a seca em muitas partes do Brasil é intensa. Pode faltar água
nas metrópoles do Sudeste. Com a seca vêm as queimadas. Os incêndios em áreas
de conservação em Minas cresceram 77%. São 421 focos. O governo do estado
lançou um plano de emergência de R$ 8 milhões, mas os prejuízos são muito
maiores e talvez o dinheiro seja curto. Se computamos os estragos das cheias,
da seca e das queimadas, vamos nos dar conta de que estamos num ano de forte El
Niño.
No Brasil é
um El Niño abandonado. Não houve planejamento. Em Minas o procurador de meio
ambiente, Mauro Fonseca Ellovitch, culpa a imprevisão do governo. Mas é um
problema nacional. Quem vai cuidar do El Niño com tantas batalhas políticas
pela frente?
O fogo
comendo aqui embaixo e os malabaristas divertindo a plateia com seus saltos. O
PT é o mais sofisticado deles. Resolveu se opor a Joaquim Levy.
Dilma
arruinou o país e precisou de Levy para sanear as contas. De modo geral, isso
ocorre em eleições, quando o perdedor deixa para trás uma terra arrasada. Mas o
PT ganhou as eleições. Se tivesse perdido, ficaria mais confortável na oposição
ao ajuste. Na ausência de um governo adversário, o PT coloca um adversário no
governo. Sabendo que Levy propõe medidas duras e tende a fracassar, o PT estará
com seu discurso em dia.
O movimento
é mais sutil porque tenta atribuir todas as dificuldades do momento à política
de Levy, mascarando o imenso rombo deixado pelo próprio governo. Duvido que
Dilma e o PT não tenham combinado o clássico movimento morde e assopra. Tanto
ela como o PT precisam de Levy: ela para acalmar os mercados e o partido para
bater nele.
Outra
figura polivalente para o PT é o próprio Eduardo Cunha. Derrubá-lo ou não
derrubá-lo? É preciso um bom número de deputados do partido para assinar o
pedido no Conselho de Ética. E um bom número para ficar calado, uma tática de
não agressão. É preciso ser contra Cunha e trabalhar nos bastidores para
mantê-lo. Enquanto encarnar a oposição no Parlamento, Cunha será apenas um roto
falando do esfarrapado.
Em
Estocolmo, Dilma alvejou Cunha, referindo-se ao escândalo: pena que seja com um
brasileiro. É um pequeno malabarismo para reduzir o maior escândalo da História
a um samba de um homem só. Ainda assim, os aliados acharam que foi um movimento
de guerra. Talvez tenha sido inábil no quadro de um acordo de paz, em que
ninguém derruba o outro.
Dilma foi à
Suécia ganhar o Prêmio Nobel de inabilidade. Foi inspecionar os objetos mais
caros que o Brasil comprará: os caças de US$ 4,5 bilhões. Nada contra a Aeronáutica
nem contra os caças suecos. Vivemos na penúria perdendo empregos, lojas
fechando, cortes de gastos. Recém-condenada pelo TCU por esconder um rombo no
Orçamento, ela escolheu como gesto político reafirmar a compra dos caças. E nos
deixou como consolo o corte de 10% no salário dos ministros.
Os tempos
mudaram tão rapidamente que já não consigo entender a lógica das agendas
presidenciais. Alguém deve ter dito: vamos dar uma resposta ao TCU posando
diante dos caças suecos, isso levanta o ânimo da galera. Depois de pedalar,
Dilma entra num caça. Recentemente, testou um carro sem piloto. Ela parece
gostar de veículos, movimento. Amante da poesia mineira, corre o risco de
parafrasear Drummond: no meio do caminho, havia um trator.
Para
muitos, o processo ainda parece dar-se num universo distante e autônomo, como
se fosse mesmo um programa de TV ao qual se pode assistir, mas não alterar o
seu curso. Aos que não acreditam nisso, resta a esperança da ação, a certeza de
que presidentes caem e sistemas políticos perversos como o brasileiro podem ser
reformados.
Ainda que
palhaços e malabaristas nos divirtam, será preciso botar fogo no circo.
Fernando Gabeira, O Estado de São Paulo, 23/10/2015.
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