Mauricio Macri, durante votação neste domingo em Bueno Aires |
A vitória
de Maurício Macri nas eleições para a presidência da Argentina (acima, ele ao
votar) põe fim a 12 anos conhecidos como Era Kirchner, um período em que o país
se transformou numa espécie de paraíso da heterodoxia econômica, misturada ao
populismo típico dos peronistas, à progressiva irrelevância no cenário
internacional e a tentativas frequentes – embora nem sempre bem-sucedidas – de
controlar o Judiciário e a imprensa. Trata-se, também, de um baque para a
esquerda latino-americana, acostumada a ídolos populistas e a ver os “hermanos”
como aliados no combate ao “imperialismo ianque”.
Se você
anda chocado com o resultado cada vez pior da política econômica implantada no
governo da presidente Dilma Rousseff, é bom lembrar que nada se compara a
Cristina Kirchner. O efeito Orloff – piada baseada naquela propaganda de vodca
cujo slogan era “eu sou você amanhã” – aparentemente continua valendo: os
argentinos estão anos adiante do Brasil no caminho da bancarrota. Basta lembrar
que a Argentina vive há mais de dez anos na tal “nova matriz econômica”, aquela
que preconiza mais gastos públicos para fazer a economia crescer, foi
implantada no primeiro governo Dilma e é defendida até hoje pelos economistas
heterodoxos e pelos desinformados nas páginas dos nossos jornais.
Lá, o
resultado disso foi o previsível. A inflação é estimada em 25% – estimada
porque os índices oficiais não são confiáveis desde que o governo interveio no
IBGE argentino, o Indec, para manipular os cálculos. O país não sabe direito o
que é crescimento econômico desde 2012, ano que marca o esgotamento no ciclo de
alta no preço de commodities globais como soja e petróleo. A classe média
portenha flerta com a pobreza há anos, e a miséria se espalha pelas províncias
mais pobres, onde boa parte da população é sustentada pelas políticas sociais
do governo. Cerca de 40% da população argentina recebe uma pensão, salário ou
benefício do Estado, parcela que dobrou desde Cristina assumiu o poder em 2007.
Déficit
público, porém, é com a Argentina mesmo. O resultado fiscal como proporção do
Produto Interno Bruto (PIB) vem piorando ano após ano pelo menos desde 2008 –
de um superávit de 1% para um déficit de 6% este ano. O dólar no câmbio
paralelo, ou “dólar azul, como é chamado por lá, tinha, até as eleições, uma
cotação 70% superior ao câmbio oficial. As reservas cambiais estão perto do fim.
Não há acordo para a renegociação da dívida externa, pois vários credores não
aceitaram os termos do calote dado por Cristina. Com isso, a Argentina não tem
crédito na praça.
Ao longo de
12 anos, o populismo introduziu no léxico argentino um vocabulário próprio – os
“abutres” (fundos que não aceitam os termos de renegociação), a “década ganha”
(cínico apelido dado por ela à Era Kirchner), a “mesa dos argentinos” (outra
expressão cínica usada para justificar o controle das importações, de modo a
privilegiar a produção local), além de tiradas como “medir a pobreza
estigmatiza” ou “matriz produtiva diversificada com inclusão social”. Todo esse
linguajar acabava se resumindo a uma única letra: K, de Kirchner.
Com a
eleição de Macri, a Argentina deverá adotar um alfabeto mais plural e um novo
vocabulário. Ele é o primeiro presidente não oriundo nem da ala peronista nem
da radical, que dominam a política argentina há décadas. Sua chapa, a
Cambiemos, foi eleita com base em uma plataforma de tons liberais, contrária ao
controle do comércio ou dos capitais. Deverá promover mudanças pró-mercado,
como o fim do controle cambial. Mas Macri já afirmou que não mexerá nos
programas sociais, nem reverá nacionalizações, como as dos fundos de pensão e
da petrolífera YPF.
A principal
mudança deverá ser a adoção de uma postura mais institucional diante da
imprensa e do poder Judiciário. Ele não tem o perfil bolivariano do casal
Kirchner. Na política externa, é esperado o afastamento da Argentina do eixo
formado por Venezuela, Bolívia e Equador. Tanto Macri quanto o derrotado Scioli
disseram que gostariam de voltar a se aproximar mais dos Estados Unidos. É um
movimento que também tende a beneficiar o Brasil. É, por fim, absolutamente
inverossímil que Macri se enrole tanto quanto Cristina se enrolou numa
investigação policial – prestes a denunciar Cristina por acobertar o papel do
Irã em dois atentados terroristas em Buenos Aires, o promotor Alberto Nisman
foi encontrado morto em condições misteriosas.
Filho de um
empresário, Macri foi vítima de um sequestro violento em 1991, que só terminou
quando seu pai pagou o resgate de US$ 6 milhões. Por 12 anos, até 2007, era
famoso como o presidente do time de futebol Boca Juniors. Jamais foi conhecido
pelo carisma, pelo bom humor ou pelo dom para a oratória. Entrou na política
como deputado, depois foi eleito prefeito de Buenos Aires. Fez várias melhorias
na infraestrutura da cidade, tanto em transporte quanto em habitação, além de
implementar reformas no Banco Ciudad, controlado pelo município.
Sua maior
dificuldade para governar será interna. Apenas 4 dos 22 governadores eleitos em
outubro passado podem ser considerados seus aliados. A coligação de Macri terá
uma maioria apertada na Câmara de Deputados, e o Senado será controlado pelos
kirchneristas por uma margem ampla. Não se sabe qual será também a reação de
Cristina após a derrota de seu candidato, Daniel Scioli.
Tanto
Scioli, 58, quanto Macri, 56, fazem parte de uma nova geração na política
argentina. Ambos estavam ainda na adolescência nos anos de chumbo da ditadura.
Não viveram a radicalização que fraturou o país. Só vieram a se interessar por
política muito depois, quando a Argentina já era uma democracia. “A geração
pós-democrática, cujos integrantes pertencem a distintos partidos, tem uma
forma distinta de se relacionar com a política”, escreve no jornal “La Nación”
o colunista Joaquín Solá. “Bem-vindos. Estava na hora de que chegasse uma
geração que não tivesse a necessidade de explicar o mundo como uma conspiração
e sem líderes ungidos em semideuses.” O mesmo vale para o Brasil.
Helio Gurovitz, O Globo, 23/11/2015
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