Sob o
impacto da estonteante goleada de 7 a 1 que a seleção alemã infligiu ao time
nacional, não faltou quem se pusesse a atribuir o vexame às mazelas
brasileiras, de que o resultado seria espelho fiel. Associou-se a catástrofe no
Mineirão, por exemplo, ao "atraso civilizatório" do País, numa
referência implícita aos padrões superlativos da Alemanha em praticamente todos
os campos. Chegou-se a lembrar que, no cômputo de Prêmios Nobel conquistados, a
grande nação europeia esmaga o Brasil por 103 a 0. A reação é compreensível,
mas nem por isso menos equivocada.
É da
condição humana, desde sempre, encontrar um sentido para fatos e situações que
desafiam a lógica, o senso comum e as expectativas baseadas em experiências
recorrentes. Daí, entre inumeráveis outras consequências, nascem as teorias
conspiratórias, que imputam ações e acontecimentos adversos ou desconcertantes
a planos urdidos nas sombras por quem quer que deles pretenda tirar proveito. A
isso se chama em ciência "relação espúria". Nela, eventos tidos como
causas e efeitos ou não se conectam de forma alguma ou, quando sim, só depois
de passar por um sem-fim de elos, como os de uma quilométrica corrente.
Uma de suas
manifestações mais comuns é a chamada "sociologia de botequim" - a
confecção de teorias tão fáceis quanto mambembes sobre fenômenos sociais incomuns
ou perturbadores. No caso do baque de Belo Horizonte, o mais certo, talvez,
seja falar em sociologia de velório. Enlutados e inconformados com a perda
repentina, absurda, do parente ou amigo próximo, alguns dos presentes tentam
aquietar o seu pesar dando ao passamento razões que a medicina teria mais
razões ainda para recusar. Tamanha a envergadura do colapso da seleção que
muitos não conseguem explicá-la pelo que se passou, ou deixou de se passar, no
gramado.
Para esses,
o futebol - nisso incluído não só o jogo tal qual se desenrolou, mas ainda a
qualidade dos times, o preparo de cada um, as táticas adotadas pelos
respectivos treinadores, o seu grau de competência e tudo o mais que transcorre
nos bastidores dessa multimilionária atividade - não dá conta do ocorrido. É
preciso, afirmam, olhar em volta. Simples assim: sendo o Brasil um poço de
problemas, nada mais natural que neles tenha se afogado o escrete ao enfrentar
a representação de um país que teria resolvido todos os seus. O corolário
consolador é que o naufrágio, quem sabe, sirva de choque de realidade para a
superação das nossas piores carências.
Há, porém,
um "pequeno detalhe": não foi o Brasil quem tomou uma sova histórica
anteontem, mas os 11 jogadores escalados por um técnico que, assim como eles,
trabalha sob contrato para uma entidade privada, a CBF, que, por sua vez,
existe para dar lucro tanto quanto as suas congêneres do mundo inteiro,
reunidas todas na famigerada federação da famiglia Blatter, a Fifa. Além disso
- e à parte a manifesta superioridade tática do adversário - o desfecho foi
literalmente excepcional. A sua causa evidente foi outra raridade, pelo menos
em jogos entre seleções da primeira liga mundial: os 4 gols alemães em 6
minutos que entorpeceram o time de Luiz Felipe Scolari.
A chance de
isso se repetir, joguem os selecionados dos dois países quantas vezes possam
até o fim dos tempos, é ínfima. No acumulado desde 1963, os canarinhos
colecionaram 12 vitórias em 22 embates, ante 5 dos rubro-negros e igual número
de empates. Isso posto, o que diriam os que culpam os males do País pelos
aberrantes 7 a 1 se a esquadra de Joachim Loew não tivesse ido além de uma
vitória por 2 ou 3 gols de diferença? Uma coisa, portanto, é a ilógica que
torna o futebol fascinante, como observa o técnico argentino Alejandro Sabella.
Outra, o Brasil. De mais a mais, em matéria de más notícias, o governo já se
incumbe de atingir os brasileiros com uma sequência interminável.
Para a vida
real da população, a derrota diante dos alemães, conquanto "humilhante",
como a imprensa do mundo inteiro se apressou a qualificá-la, é de uma
irrelevância atroz perto de outro resultado dessa funesta terça-feira. A
inflação em 12 meses, medida pelo IPCA, chegou a 6,52%, arrebentando o teto da
média estipulada pelo governo. Goleada é isso.
O ESTADO DE S.PAULO - 10 Julho 2014
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