Tá lá o
corpo estendido no chão. Acabou uma época imprensada entre a crise econômica e
uma profunda desconfiança da política. Não quero dizer com isso que o atual
governo federal, com sua gigantesca capacidade, milhões de reais e a máquina do
Estado, perderá a eleição. Não o subestimo. Quando digo que acabou uma época
quero dizer que algo dentro de nós se está rompendo mais decisivamente, com as
denúncias sobre o assalto à Petrobrás.
De um ponto
de vista externo, você continua respeitando as leis e as decisões majoritárias.
Mas internamente sabe que vive uma cisão. A contrapartida do respeito à maioria
é negada quando o bloco do governo se transforma num grupo de assaltantes dos
cofres públicos.
Uma
fantástica máquina publicitária vai jogar fumaça nos nossos olhos. Intelectuais
amigos vão dizer que sempre houve corrupção. Não se trata de um esquema de
dominação. Ele tem seus métodos para confundir e argumentar.
O elenco
escolhido pelo diretor da Petrobrás para encenar o grande assalto na política
não chega a surpreender-me. O presidente do Senado, Renan Calheiros, e o
presidente da Câmara, Henrique Alves, são atores experimentados. A diferença
agora é que decidiram racionalizar. Renan e Alves viveram inúmeros escândalos
separadamente. Agora estão juntos na mesma peça. Quem escreve sobre escândalos
deve ser grato a eles. Com a presença num mesmo caso, Renan e Alves nos
economizam um parágrafo. Partimos daí: os presidentes do Senado e da Câmara
brasileira são acusados de assaltar a Petrobrás.
Deixamos
para trás um Congresso em ruínas e vamos analisar o governo. O ministro de
Minas e Energia, Edison Lobão, foi acusado, o tesoureiro do PT também foi
denunciado. As declarações deixam claro que Lula levou o diretor para o posto e
elogiava seu trabalho na Petrobrás.
Em termos
íntimos, não há governo nem Congresso para respeitar. Ambos já mudaram de
qualidade. Os que se defendem afirmando que sempre houve corrupção não percebem
a fragilidade do argumento. É como se estivessem diante do incêndio do Rio e
alguém sussurrasse: "O Nero, lembra-se? O Nero também incendiou Roma".
Grande
parte dos analistas se interessa pela repercussão do escândalo na corrida
presidencial. Meu foco é outro: a repercussão na sensação de ser brasileiro.
Quem talvez conheça melhor essa sensação são as pessoas que vivem em favelas,
dominadas pelo tráfico ou pela milícia.
Existem
diferenças entre as favelas e o Brasil que as envolve. Diante de escândalos
políticos somos livres para protestar, o que não é possível nos becos e vielas.
E contamos com a Justiça. No caso do mensalão, o processo foi conduzido por um
juiz obstinado e com dor nas costas, pouco tolerante a artifícios jurídicos.
Neste caso da Petrobrás há indícios de que o juiz Sérgio Moro, competente em
analisar crimes de lavagem de dinheiro, pretende avançar nas investigações. E
avançar por um território que não é virgem, mas extremamente inexplorado: o
universo das empreiteiras que subornam os políticos.
Lembro-me,
no Parlamento, dos esforços do velho Pedro Simon para que se investigassem
também as empreiteiras nos escândalos de suborno. Falar disso no Congresso é
falar de corda em casa de enforcado. Ele não conseguiu. Mas Simon queria
mostrar também que os políticos não se corrompem sozinhos. Desgastados,
polarizam tanto a rejeição que poucos se interessam por quem deu dinheiro e com
que objetivo.
Leio nos
jornais que as empreiteiras fizeram um pool de excelentes advogados e, pela
primeira vez na história, vão se defender de forma coordenada. Vão passar por
um momento crucial. Ainda no Congresso, apresentei projeto regulando suas
atividades no exterior. A presunção era de que mesmo no exterior o suborno era
ilegal para uma empresa brasileira. Alguns países já adotam essa política.
Sinceramente,
não sei se o caso das empreiteiras é apenas de bons advogados. Em muitos
lugares do mundo, algumas empresas assumem seus erros e se comprometem com um
novo tipo de relação com as leis. Isso no Brasil seria uma decisão audaciosa.
Sem o suborno, devem pensar, não há chance de ter contratos com o governo.
Se, como no
mensalão, a justiça for aplicada com severidade, também as empreiteiras serão
punidas. Mais uma razão para pensar numa mudança de comportamento para a qual o
País já está maduro. Todo esse processo de corrupção pode ser combatido,
parcialmente, a partir de nova cultura empresarial. Os outros caminhos são
transparência, Polícia Federal, Justiça, liberdade de imprensa e internet.
Quando
afirmo que uma época acabou, repito, não excluo a vitória eleitoral das forças
que assaltam a Petrobrás. Mas, neste caso, o governo sobreviverá como um
fósforo frio. Maduro, na Venezuela, vê Chávez transfigurado em passarinho. Esse
truque não vale aqui, pois Lula está vivo. E no meio da confusão.
Não creio
que o Congresso será melhor nem que a oposição, que não soube combinar a
crítica econômica com a rejeição moral, possa realizar algo radicalmente novo.
O próprio Supremo não é mais o mesmo. Modestamente, podemos esperar apenas
alguma melhoras e elas vão depender de como o povo interpretará o saque à
Petrobrás. Na minha idade já não me posso enganar: Senado, Câmara, governo,
tudo continua sendo formalmente o que é; no juízo pessoal, são um sistema que
nos assalta.
O PT, via
Gilberto Carvalho, acha que a corrupção é incontrolável e propõe financiamento
público de campanha. Bela manobra, como se o dinheiro da Petrobrás não fosse
público. Os adversários têm tudo para desconfiar da tese. Ficariam proibidos de
arrecadar com empresas, enquanto dinheiro a rodo é canalizado das estatais para
o PT, que se enrola na Bandeira Nacional e grita: "O petróleo é
nosso!".
*Fernando Gabeira - O Estado de São Paulo, 12/9/2014.
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