O
petróleo era nosso, agora a Petrobrás é deles. Diante do volume de recursos
desviados passou-se a usar a expressão lacerdista mar de lama, adjetivação dada
pela UDN aos fatos ocorridos no final do governo Vargas, em 1953-54. Quais
foram, há 60 anos, os acontecimentos que geraram expressão tão forte?
Na
biografia de Getúlio Vargas (terceiro volume) Lira Neto conta que as acusações
se prendiam à importação de dois veículos Rolls Royce para a Presidência da
República, livre de imposto de importação. A importadora em vez de dois
veículos importou quatro, livres de impostos, destinando dois a particulares –
um à importadora Santa Teresinha, da família Maluf, e outro ao magnata Peixoto
de Castro. Outras irregularidades denunciadas diziam respeito à concessão de
loterias federais e à compra de locomotivas para a Central do Brasil sem
licitação. A oposição dizia-se estarrecida, comenta o biógrafo, e daí apodar-se
o governo de mar de lama.
Outro
presidente acusado de corrupção, mas afastado do cargo por impeachment foi Fernando
Collor. Márcio Thomaz Bastos, recém-falecido, e eu fomos chamados pela CPI do
PC Farias para ajudar na elaboração do relatório final. Detidamente analisei as
provas, especialmente as relações entre a Casa da Dinda, residência do
presidente, e PC Farias. Constatei, então, ter PC Farias irrigado, com parte do
dinheiro arrecadado com exigências praticadas em conjunto com autoridades
federais, contas fantasmas movimentadas pela secretária particular de Collor,
por via das quais se pagavam gastos da Casa da Dinda.
Pouco
depois, José Carlos Dias telefonou-me convidando para reunião em sua casa, na
qual se discutiria o impeachment de Collor. Estavam presentes o anfitrião,
Dalmo Dallari, René Dotti, Flávio Bierrenbach e Fábio Comparato. René foi
incumbido de elaborar um plano geral. Coube, posteriormente, a Comparato
escrever a parte relativa à quebra do decoro e a mim, que tinha cópia dos
elementos essenciais da CPI do PC Farias, redigir a acusação acerca do fato de
o presidente ter deixado de zelar pela probidade da administração pública, sem
apurar a responsabilidade de subordinados e recebendo benefícios na conta
gerenciada por sua secretária.
O grupo
de advogados teve mais duas reuniões para exame do texto, em minha casa e
depois na casa de Márcio Thomaz Bastos, com a presença de Evandro Lins e Silva,
na qual se aprovou a versão final, submetida aos presidentes da OAB-Conselho
Federal e da ABI, subscritores iniciais do pedido de impeachment, fundado no
descumprimento do dever constitucional de zelar pela probidade administrativa.
Em 2005
surgiu o mensalão, comprometendo a estrutura da República pela compra de votos
de inúmeros parlamentares de diversos partidos às vésperas de votações
importantes com recursos obtidos com a contratação falsa de publicidade e depois
entrega de envelopes recheados em hotéis de Brasília, envolvendo ministro da
Casa Civil e presidentes de partidos políticos na cooptação da vontade
parlamentar. O presidente Lula de início se disse traído, depois vem
tergiversando. A fragilidade da oposição permitiu que o presidente passasse
incólume.
Mas são
do seu governo as falcatruas na Petrobrás, sendo então a atual presidente,
primeiramente, ministra de Minas e Energia e depois chefe da Casa Civil, mas
sempre presidente do Conselho de Administração da Petrobrás, conselho ao qual,
pelo estatuto, coube a nomeação dos diretores, esses mesmos agora presos e
acusados de locupletamento de milhões.
Denunciado
o mensalão, que garantia a “fidelidade” da base governista, instituiu-se o
petrolão, nova fonte de recursos a não serem contabilizados. O Tribunal de
Contas da União (TCU) apontou em 2007 haver graves distorções em obras da
Petrobrás, recomendando a paralisação da sempre lembrada refinaria de Abreu e
Lima. O Congresso não acompanhou a recomendação do TCU e o Executivo nada fez.
Em 2009 novamente o TCU recomendou e o Congresso acolheu, na Lei Orçamentária,
a suspensão das obras da refinaria.
Alertadas
a Presidência e a ministra Dilma, presidente do Conselho de Administração da
Petrobrás, resolveu Lula vetar o artigo do projeto de lei orçamentária que
suspendia a obra suspeita, com argumento do prejuízo social dessa paralisação,
dando livre curso às irregularidades. Limitou-se a Presidência a recomendar à
Corregedoria a apuração de eventuais desvios, sem se dar o devido relevo ao TCU
e ao próprio Congresso, tanto que a Corregedoria, displicentemente, três anos
depois, em 2012, afirmou não ter sido possível verificar nenhuma irregularidade
por falta de conhecimento dos parâmetros utilizados pelo TCU na constatação dos
desvios.
Hoje
está estampado em cores gritantes o tamanho do desmando, a fonte contínua de
montanhas de dinheiro desviado em obras e aquisições pelas diretorias da
Petrobrás na gestão de Dilma e Lula, a ponto de um só gerente, agora em delação
premiada, comprometer-se a devolver R$ 250 milhões de que se apropriara.
Segundo
consta, havia um diretor responsável por gerir as vantagens ilícitas de cada um
dos três partidos da base: PT, PMDB e PP. Assim, os parlamentares da base,
formada por esses partidos, continuavam “fiéis” ao governo, que fechava os
olhos aos desmandos de toda ordem na estatal, antes considerada a pérola da
República, mas que ora amarga prejuízos e descrédito incomensuráveis no Brasil
e no exterior. A peso de ouro o governo manteve uma maioria parlamentar sempre
pronta a fazer naufragar CPIs no Congresso.
Cabe ao
leitor comparar o sucedido à época de Getúlio e com Collor em 1992 ao que
ocorre hoje para avaliar o que vem a ser um mar de lama, se há ou não omissão
dolosa ou culposa no devido zelo da probidade administrativa e na apuração de
responsabilidade de subordinados.
Miguel Reale Júnior - Advogado, Doutor em Direito, Professor da USP desde 1977, ex-Ministro da Justiça.
Nenhum comentário:
Postar um comentário