Nunca vi
nada igual. Todas as certezas estão desabando, toda fé, todas as esperanças
morrem diante dessa abundância de escrotidões, esse despautério de horrores. A
gente liga a TV, lê o jornal e cai em cava depressão. “Tudo o que é sólido
desmancha no ar”, como disse Marx, tão mal entendido pela esquerda burra que
tomou o poder na base de mentira e fraudes, como vemos com as granas “legais”
que a tesouraria do PT recebeu dos restos de propinas. A velha “esquerda”
sempre foi um sarapatel de populismo, getulismo tardio, leninismo de galinheiro
e desde 2002 inventou a adesão monstruosa aos velhos roubos da velha direita.
A chegada
do PT ao governo reuniu em frente única: as oligarquias privadas com o
patrimonialismo do Estado petista. Foi o pior cenário para o retrocesso:
Sarney, Calheiros, até o Collor, unidos aos idiotas bolivarianos. Essa base de
ação foi o adubo para os crimes da Petrobras e outras dezenas de roubalheiras
em hidrelétricas, aeroportos, portos, tudo.
O
advogado de um dos acusados disse a frase síntese: “No Brasil, se não der uma
grana na mão dos governantes, nem um paralelepípedo você coloca no chão”. E é o
pais inteiro, não apenas a PTbras.
Mas, de
quem é a culpa disso tudo?
Claro
que a responsabilidade principal é a aplicação bolchevique do “toma lá, dá cá”,
através do presidencialismo de cooptação para obter apoio dos partidos, ou
seja, a corrupção permitida e estimulada é o motor petista da governabilidade.
Pode uma coisa dessas?
Será que
os costumeiros ladrões já sacaram que a “mão grande” é o novo “hype”?
A
destruição da Lei de Responsabilidade Fiscal que Dilma iniciou é o exemplo
dessa permissividade. Cada prefeitura do país vai partir para gastos corruptos.
As instituições democráticas estão sem força, se desmoralizando, já que o
próprio governo as desrespeita.
Será que
é culpa dos organismos arcaicos do Poder Judiciário?
Ou será
o surgimento de novos problemas que não são solucionáveis com os velhos
mecanismos de poder?
Mas o
que preocupa é que todo esse gigantesco volume de crimes denunciados possa gerar
um congestionamento na Justiça, uma turbulência irreversível que transforme
tudo numa massa jurídica informe. O exército de advogados já está convocado
para novas e caras chicanas. O que estamos vivendo pode virar um apocalipse
institucional.
O Brasil
está irreconhecível. Nunca pensei que a incompetência casada com o delírio
ideológico promoveria este caos. Há uma mutação histórica em andamento, como
disse acima, mas que pode ser para pior, para um “quarto mundo”. Esse desastre
me lembra a metáfora de Oswald de Andrade, de que “as locomotivas estavam
prontas para partir, mas alguém torceu uma alavanca e elas partiram na direção
oposta”.
Isso
causa não apenas o caos administrativo como também provoca uma mutação na mente
e no comportamento das pessoas.
O Brasil
está sendo desfigurado dentro de nossas cabeças, o imaginário nacional está se
deformando.
Há uma
grande neurose no ar. Cria-se uma vontade de fuga. Nunca vi tanta gente falando
em deixar o pais e ir morar fora.
As
mudanças mentais são visíveis: nos rostos tristes nos ônibus abarrotados, na
rápida cachaça às 6 da manhã dos operários antes de enfrentar mais um dia de
inferno, nos feios, nos obesos, no desânimo das pessoas nas ruas, no pessimismo
como único assunto em mesas de bar.
Estamos
experimentando sentimentos inesperados, dores nunca antes sentidas. Quais são
os sintomas mais visíveis desse trauma histórico?
Por
exemplo, o conceito de solidariedade natural, quase “instintiva”, está
acabando. Já há uma grande violência do povo contra si mesmo. Garotos decapitam
outros numa prisão, ônibus são queimados por nada, com os passageiros dentro,
meninas em fogo, presos massacrados, crianças assassinadas por pais e mães, uma
revolta sem rumo, um rancor geral contra tudo. Cria-se um desespero de autodestruição
e o país começa a se atacar.
Outro
nítido efeito na cabeça das pessoas é o fatalismo: “É assim mesmo, não tem
jeito não”. O fatalismo é a aceitação da desgraça.
E
crescem a desesperança e a tristeza. O Brasil está triste e envergonhado.
Essa fragilização
da democracia traz de volta também um desejo de autoritarismo na base do “tem
de botar para quebrar!” Já vi muito chofer de taxi com saudades da ditadura.
A
ausência de uma política contra a violência e a ligação de muitos políticos com
o tráfico estimula a organização do crime, que comanda as cadeias e já
demonstra uma busca explícita do horror. A crueldade é uma nova arte
incorporada em nossas cabeças, por tudo que vemos no dia a dia dos jornais e
TV. O horror está ficando aceitável, potável.
O
desgoverno, os crimes sem solução, a corrupção escancarada deixam de ser
desvios da norma e vão criando uma nova cultura: a “normalização” da ignomínia;
por trás do crime e da corrupção, consolida-se a cultura da mentira, do
bolivarianismo, da preguiça incompetente e da irresponsabilidade pública.
Vivemos
um paradoxo, um pleonasmo: aqueles que pensam não sabem o que pensar — como
refletir sem uma ponta de esperança? Todos falam: “precisamos fazer isso, fazer
aquilo, mas ninguém sabe quem fará”. Temos aí a nova escola crítica: a análise
impotente da impotência, a “contemporaneidade” pessimista de intelectuais, a
utopia da distopia.
É
difícil botar a pasta de dente para dentro do tubo. Há uma retroalimentação da
esculhambação generalizada que vai destruindo as formas de combatê-la.
Tecnicamente não estamos equipados para resolver as deformações que se acumulam
como enchentes, como um rio sem foz.
O Brasil
está sofrendo uma mutação gravíssima, e nossas cabeças, também. Sempre ouvimos
que o Brasil estaria à beira do abismo; será que já caímos nele? Será que a
vaca já foi para o brejo?
Arnaldo Jabor - O Globo, 9/12/2014
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