Convém relembrar que a Lei da Anistia foi o instrumento que tornou possível a transição democrática
Na
quarta-feira, 10 de dezembro, foi apresentado o Relatório da Comissão da
Verdade, que, com mais propriedade, deveria ser chamada de Comissão da
Parcialidade ou do Revanchismo. Entre outras pérolas, terminou
responsabilizando presidentes, ministros das Forças Armadas, comandantes
militares que nada tiveram a ver com a tortura.
Apesar
do seu fraseado de que não proporia a revisão da Lei da Anistia, a sua
recomendação de responsabilização penal dos que estiveram envolvidos direta ou
indiretamente na tortura equivale, de fato, a uma revogação desta lei. A
comissão fala de não aplicação da Lei da Anistia nos casos por ela
recomendados. A sua proposta não resiste a um teste elementar do princípio de
não contradição, resultando numa monstruosidade jurídica. A comissão deveria
ter feito preliminarmente um curso elementar de lógica.
Convém
relembrar que a Lei da Anistia foi o instrumento que tornou possível a
transição democrática e a estabilidade constitucional e institucional dela
derivada. Trata-se de um pacto da nação consigo que, enquanto tal, não pode ser
revogado, sob pena de rompimento grave de um contrato político. O que a
Comissão da “Verdade” está propondo é uma nova narrativa histórica, baseada em
suas próprias condicionantes ideológicas e em seus propósitos
político-partidários.
Entre os
militares listados encontram-se os que foram os fiadores da transição
democrática. A comissão, em sua obsessão revanchista e ideológica, lista, por
exemplo, o presidente Geisel e o general Golbery, que se insurgiram contra a
tortura, afastando, mesmo, comandantes militares nela envolvidos. Foram,
ademais, os que realizaram a transição do regime militar para a democracia
representativa. O general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército no
governo Sarney, foi fiador da transição e, junto com o seu Alto Comando,
impediu a ação dos radicais e recalcitrantes em relação à nova democracia que
então se estabelecia. O marechal Castelo Branco nem foi presidente durante o
período em que ocorreu a tortura.
O
general Leo G. Etchegoyen, no Rio Grande do Sul, é mesmo considerado, por
militantes dos direitos humanos no Sul, um homem honrado. Seu filho, general
Sergio W. Etchegoyen, membro do Alto Comando, e sua família, reagiram com
altivez e coragem contra essa calúnia. Com propriedade, qualificaram o
relatório de “leviano”. Outros exemplos seriam igualmente possíveis.
O
objetivo maior da comissão consiste em um ataque à própria Instituição Militar,
procurando incompatibilizá-la com os cidadãos brasileiros. O que se extrai da
conclusão do seu relatório é que todos os militares seriam golpistas,
potencialmente torturadores e adeptos da ditadura. Necessitariam, portanto, ser
“corrigidos” e “julgados” por estes comissários que se colocam na posição de um
“Tribunal da História”.
Note-se
que, dentre as recomendações, consta a de que as academias militares deveriam
seguir um novo currículo baseado nos “direitos humanos”, isto é, na concepção
ideológica desta esquerda que reivindica para si a “propriedade” desses
direitos. Os “direitos humanos” seriam submetidos a uma narrativa ideológica
que passaria a orientar a cabeça dos novos militares, à semelhança do que
ocorre na Venezuela, onde são obrigados a juramentos castristas.
Arbitrariamente,
a comissão delimitou a sua investigação aos agentes de Estado que cometeram
violências, deixando de fora as violências cometidas pela esquerda armada.
Houve uma escolha ideológica que já tornou parcial o resultado de seu trabalho.
A Comissão da Verdade, em seu escopo original, deveria ter como objeto todos os
lados envolvidos no conflito e não somente um. Deste modo, a narrativa por ela
construída termina por falsear a sua pesquisa, produzindo uma espécie de
revanche ideológica e política.
Por
exemplo, teria produzido depoimentos sigilosos de torturadores que, abrigados
pela Lei da Anistia, poderiam falar sem medo. Ameaçados de serem responsabilizados
criminalmente, calaram-se. O Brasil perdeu uma oportunidade histórica. Aliás, a
comissão, salvo no caso das circunstâncias da morte do deputado Rubens Paiva,
nada produziu de novo, que já não constasse, em linhas gerais, do extenso
documento “Tortura nunca mais”. Poderia, também, ter utilizado o livro
produzido pelos militares, “Orvil” (livro ao inverso), com uma detalhada
narrativa de todo esse período de luta contra a esquerda armada.
Peculiar
é a concepção destes comissários dos “direitos humanos”. Ao descartarem as
vítimas dos assassinatos esquerdistas, em torno de 120 militares, policiais e
civis, além dos que foram objeto de justiçamentos por ditos “tribunais
revolucionários”, eles terminaram considerando-os como não caindo sob o
conceito de “humanos”, desprovidos como se fossem destes “direitos”. Ou seja,
os que não encarnaram a luta “revolucionária” não são propriamente humanos, nem
merecendo uma pesquisa histórica. Agora, os que lutavam pela “ditadura do
proletariado”, procurando implantar entre nós o totalitarismo esquerdista,
ganham o nome de libertários e defensores da democracia.
Perdeu-se,
também, uma oportunidade de ouro de uma pesquisa voltada para o financiamento
destes grupos da esquerda armada, além de suas concepções manifestamente não
democráticas. Uma investigação deste tipo teria produzido, aí sim, uma
narrativa fidedigna do período, mostrando o financiamento cubano de alguns
destes grupos, maoísta de outros. Também seria possível conhecer os seus
treinamentos, por exemplo, na ilha dos irmãos Castro, que se caracteriza por
violências sistemáticas contra a oposição, as liberdades civis e religiosas,
além de descartar qualquer forma de representação democrática. Seria
interessante conhecer o currículo do que foi ensinado em suas academias
militares. Outra pesquisa de maior valia seria uma análise de seus documentos
onde primam as concepções leninistas, afastadas, evidentemente, de qualquer
comprometimento com a democracia e as liberdades.
Denis
Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul
Publicado em O Globo - 15/12/2014
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