O país
desatará, ou não, o nó da corrupção sistêmica?
Concordo
com o poeta: o último dia do ano não é o último dos tempos. Mas é o amanhã, o
que será do amanhã? O ano passado nos massacrou com o imprevisto, e algumas
certezas se queimaram na ferrugem dos aviões caídos, nas ações da Petrobras
caídas, nas cinzas maniqueístas de uma eleição presidencial.
Se os
tempos continuam, a grande pergunta é: o país desatará, ou não, o nó da
corrupção sistêmica? Ela explodiu no petróleo, futebol, vôlei e futsal. Se
roubar fosse um esporte olímpico, nesse momento, seríamos candidatos ao ouro.
Não temos, no entanto, a mínima ideia de como guardá-lo em segurança. Basta
lembrar o roubo da Taça Jules Rimet.
Se os
tempos continuam, será preciso trabalhar, e esse calor é infernal para muitos
ofícios. Em termos de longo prazo, há uma esperança de conter o aquecimento.
Não creio, por experiência própria, em grandes reuniões como a de Paris, em
2015. Mas com acordos regionais, muita preparação, quem sabe não chegamos lá,
se é que ainda adianta chegar a algum lugar a essa altura dos acontecimentos.
Se os
tempos continuam, é preciso continuar sonhando. Com cuidado: sonhos se
transformam em pesadelos. Li uma pesquisa numa universidade do Canadá que
mostra como o pesadelo nasce do sonho.
A coisa
começa no hipocampo, sede da memória contextual, onde se misturam elementos de
ansiedade vindos de medos vividos com outros mais tranquilizantes. Quando os
elementos negativos predominam, a equação se desequilibra, o sonho vira
pesadelo: a saída é acordar trêmulo e suado no meio da noite.
Sob muitos
aspectos, o período que se encerra dá medo. Crimes bárbaros se sucedem, o filho
chora, a mãe não ouve, crianças morrem esquecidas dentro de carros, a vaca não
reconhece mais seu bezerro. Parece o fim dos tempos, mas, como o poeta lembra,
é apenas o fim do ano.
Nos
laboratórios do Vale do Silício se pesquisa o prolongamento da vida humana.
Seremos eternos finalmente? E se pesquisa também a supressão da necessidade de
governo nos círculos científicos anárquicos.
Parece
fantasia, mas é verdade. Só que ainda não está ao alcance. A vida será
prolongada, governos perderão importância, mas, enquanto isso não acontece,
temos de cuidar bem do corpo e falar mal do poder.
Quando
se olha para trás, com a perspectiva de 50 anos, e não apenas do acidentado ano
de 2014, veem-se os estertores da Guerra Fria no Caribe e constata-se como o
tempo tem o seu ritmo na América Latina.
O mesmo
ritmo lento que atrasou, no Brasil, a abolição da escravatura e que, hoje,
ainda mantém em muitos dos nossos países o horizonte burocrático do socialismo,
tão severamente derrotado no século XX.
Ainda se
canta a “Internacional”, se veste camisa vermelha e se elege o proletariado
como o único sujeito de transformação da História.
Nesse
lusco-fusco, nessa névoa de um passado que não passa, a construção do futuro é
um vale tudo que dissolve todos os valores e engendra esse momento fluido entre
sonho e pesadelo.
Gostaríamos
de ver, mas não veremos, em 2015, a paz duradoura no Oriente Médio.
Decapitações, assassinatos em massa, venda de mulheres ainda estão em voga com
a presença do Exército Islâmico e seu Califado.
Obama
intuiu bem ao considerar o socialismo um sonho em ruínas e o fanatismo
religioso o verdadeiro pesadelo em progresso.
Começa,
nesta semana, o quarto governo do PT e de seus aliados. Se compararmos o
impulso com o governo Kennedy, achamos uma oposição simétrica na formação do
ministério de Dilma.
Lá nos
EUA, a ideia era trazer os best and brightest, os melhores e mais brilhantes da
academia e da sociedade. Aqui, ela buscou intensamente a mediocridade.
Nos
Esportes, contaminado pela corrupção, ela escolheu um homem que não conhece o
ramo, mas foi preso num aeroporto com quase R$ 1 milhão, dinheiro, no mínimo,
não contabilizado, para usar uma expressão da novilíngua petista.
Para
Ciência, Tecnologia e Inovação, ela optou por um deputado que apresentou
projeto contra invenções científicas que ameacem o emprego.
Para a
Pesca, o jovem Barbalho, filho de Jader Barbalho, que foi preso e algemado por
desvios num projeto de criação de rãs.
Das rãs
às tilápias, os Barbalho terão a oportunidade de mergulhar mais fundo nas águas
turvas do governo de coalizão.
Caberá a
um quadro do PT, distante do tema comunicações, ocupar o ministério com o
objetivo de estabelecer o controle social da mídia.
Como se
a essa altura fosse possível mesmo controlar alguma coisa, no auge de um
escândalo, capaz de apontar o fim, não dos tempos, mas de certas práticas de
governo no Brasil.
Em 2014,
foi revelada a face econômica do assalto à Petrobras. Em 2015, será revelada a
face política. Como se dará a tensão entre sonho de mudança e o pesadelo da
inércia?
Pelo
menos, as pesquisas garantem que tanto sonho como o pesadelo nos fazem bem:
protegem da realidade. Até que o despertador nos lembre, como Dom José Cavaca;
acorde, já é 2015, e você precisa trabalhar.
Fernando Gabeira, O Globo, 4/1/2015
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