quarta-feira, 21 de maio de 2014

Copa deve deixar um legado de insatisfações

No gramado, é impossível dizer se o Brasil sairá vitorioso na Copa do Mundo, que começa dentro de 23 dias. No campo político, a batalha parece perdida pelo governo.

Nunca na história do país do futebol houve tantas pessoas enfurecidas ou indignadas com os gastos feitos para a realização de um Mundial, ainda mais no Brasil.

Que a Copa seja motivo de polêmicas já é algo antes inimaginável, que revela, talvez, mudanças profundas em direção a uma cidadania reivindicativa - este, seria, sem dúvida, um bom legado da Copa.

E, no que se refere à preparação técnica e organizacional para o evento, o Brasil corre não só para entregar obras que já deveriam estar prontas, como para evitar desastres que prejudiquem a sua imagem.

Para ser escolhido como país sede da Copa, o Brasil enviou à Federação Internacional de Futebol (Fifa) um cartapácio com 3,5 mil páginas onde relacionava todo o necessário para o evento.

Confirmada a escolha, que se deve à popularidade do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e aos bons resultados que sua administração colhia em 2007, a bola passou para o país.

Já se previa, embora o ufanismo o camuflasse, que os preparativos não fugiriam à tradição brasileira de falta de planejamento, atrasos, improvisação, estouro de custos e baixa qualidade.

Como propaganda era a alma para vender aos brasileiros a realização do Mundial, o governo cruzou as obras necessárias ao evento com as do Programa de Aceleração do Crescimento e tudo, de obras de mobilidade urbana a estádios, entrou no tal "legado da Copa", que seria fatalmente positivo.

Não há jogo sem estádio e eles tiveram a prioridade. Ainda assim, a um alto custo e com desperdícios. Para a Fifa, oito sedes seriam suficientes. O governo emplacou 12, talvez para atender interesses de sua enorme base aliada, em conta que pode atingir R$ 8 bilhões.

A melhoria dos infernais transportes coletivos foi apresentada como um dos subprodutos mais valiosos da competição. Ao choque de realidade, o discurso mudou.

Primeiro, os projetos de mobilidade urbana ficaram para trás dentre as obras da Copa. A tempo, ao que parece, só o VLT de Fortaleza foi concluído.

Os demais entraram então no cronograma mais moroso do PAC, do qual constavam originalmente. Membros do governo agora dizem que esses empreendimentos nunca estiveram ligados ao Mundial.

Não só em grandes obras de engenharia os atrasos se tornaram preocupantes. Em fevereiro, há quatro meses dos jogos, auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) revelou que nenhum dos contratos para implantar estrutura de apoio a turistas estava sendo executado.

De hotéis a aeroportos, quase nada do que foi planejado ficará pronto no momento adequado.

Vieram as manifestações de junho e sua cobrança por melhores serviços públicos e, entre outras coisas, as perspectivas para o Mundial mudaram - ele se tornou símbolo de gastos supérfluos.

Enquanto o governo perdia pontos com isso, a crônica incapacidade gerencial expunha o Brasil a cobranças vexatórias vindas da Fifa, um órgão manchado por denúncias de corrupção.

Seu secretário-geral, Jerôme Valcke, chegou a dizer que os brasileiros mereciam um "pontapé no traseiro" por não realizarem os preparativos a contento.


A arrogância dos cartolas internacionais subiu uma nota com as declarações infames do presidente Joseph Blatter, de que, para o país melhorar, é preciso a "vontade do povo de trabalhar". O governo brasileiro não protestou publicamente contra elas.

Com a maior parte da população agora achando que a Copa no Brasil não foi uma boa ideia - 52%, segundo pesquisa mais recente do Datafolha - e as chances de reeleição da presidente Dilma Rousseff em baixa, o humor nas hostes governistas desandou.

O ex-presidente Lula, que geralmente tem certeira intuição política, errou feio ao dizer que o desejo de ter metrô até os estádios era "babaquice" - isso, apenas um dia depois de ocorrerem protestos em várias cidades do país contra a Copa e por melhores transportes.

Haverá, assim, Copa, do jeito brasileiro, improvisada e sujeita aos azares. Ela já desagradou a uma multidão de brasileiros e corre o risco de não cativar milhares de turistas estrangeiros esperados.

Não há dúvidas de que, com a seleção em campo, o Brasil vestirá a camisa, mas fora dele prevalecerá uma forte e difusa insatisfação com as mazelas sociais do país.

Editorial do Valor Econômico - 20/05/2014

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