Em 2007,
quando o Brasil se candidatou a receber a Copa, o então presidente, Luiz Inácio
Lula da Silva, e o ministro dos Esportes da época, Orlando Silva Júnior, eram
categóricos em afirmar que os estádios seriam erguidos exclusivamente com
dinheiro privado.
Hoje, a
realidade não poderia estar mais distante da promessa. 100% dos estádios da
Copa foram ou estão sendo construídos com algum percentual de dinheiro público,
resultando em um custo de mais de R$ 8 bilhões. Em 9 das 12 arenas da Copa, não
houve ou há um centavo de recurso privado bancando as obras. E, em todas as
arenas, os custos finais das empreitadas são muito maiores do que as projeções
iniciais.
O que
explica tamanha discrepância entre o planejado e o executado? É custoso crer
que em algum dia foi seriamente cogitado erguer os estádios da Copa
exclusivamente com dinheiro privado. Por mais de um motivo.
Pela lista
de estruturas exigidas pela Fifa para as arenas, sabida desde o início do
processo, não havia um só estádio preparado no país para receber o evento sem
antes passar por reformas milionárias.
O Brasil
poderia ter organizado uma Copa com apenas oito ou dez cidades-sedes. O governo
federal, porém, divulgou em 31 de maio de 2009 a opção por 12, incluindo entre
elas cidades sem clubes de tradição no futebol nacional, como Brasília, Cuiabá
e Manaus. Ou seja, três cidades onde dificilmente haveria retorno econômico
oriundo do futebol para os investidores privados.
Mas não é somente nessas cidades que o
pretenso desejo de se fazer "a Copa do dinheiro privado" parece
apenas jogo de cena. Nas demais nove sedes, a obrigação contratual de erguer
arenas padrão Fifa em um tempo exíguo era do poder público brasileiro.
Ora,
qualquer clube de futebol do país - em sua maioria endividados e com
impedimentos judiciais para tomar empréstimos de alto vulto - ou empreiteira
que fosse assumir o compromisso de levantar do chão tais estádios em menos de
cinco anos naturalmente exigiria dos governos (federal, estadual ou municipal)
garantias e vantagens para entrar no negócio. Afinal, a tarefa era árdua, o
tempo era exíguo e o compromisso era do Brasil, não dos clubes, construtoras ou
investidores privados.
Assim, a
Copa do dinheiro privado naturalmente se transformou na Copa do dinheiro
público, independentemente da modelagem financeira da construção ou da
realidade do futebol local onde as arenas foram erguidas. Veja, abaixo, o
caminho que levou o contribuinte brasileiro a empenhar bilhões de reais em
estádios de futebol padrão Fifa
Elefantes brancos
Em
Brasília, Cuiabá e Manaus não havia nenhum estádio privado de grande porte. Os
que existiam, antigos e carentes de reformas, eram todos públicos. Nessas
capitais, jamais se cogitou fazer a Copa em outros locais que não nas arenas
públicas.
Na capital
do Amazonas, por exemplo, em 2008 o governo local anunciava que pretendia fazer
uma grande reforma no estádio Vivaldão caso Manaus fosse escolhida como sede.
Em maio de 2009, o plano mudou: o governo estadual informou que havia
contratado um projeto arquitetônico que incluía a derrubada do Vivaldão e a
construção de uma nova arena, a um custo de R$ 500 milhões.
A média de
público por jogo dos principais times de Manuas não chega a 1.000 pessoas. Como
se poderia imaginar, nenhum investidor privado se interessou pela empreitada.
Isso não desencorajou o então governador Omar Aziz, que decidiu que o Estado do
Amazonas bancaria a obra, pois ela seria "um vetor de desenvolvimento do
turismo na cidade".
Assim, em
um Estado cujo orçamento anual da Secretaria de Justiça é de R$ 108 milhões, o
governador estadual decidiu bancar a obra de R$ 500 milhões. Atualmente, a
conta da Arena Amazônia está em R$ 705 milhões.
Já na
capital federal, os principais clubes de futebol, como Brasília, Gama e
Brasiliense, protagonizam um campeonato regional cuja média de público neste
ano foi de 1.036 pagantes. Por lá, os políticos sequer chegaram a cogitar a
chance de a iniciativa privada investir na construção de um estádio de futebol
para 70 mil pessoas, como queriam e fizeram as autoridades locais.
No dia 20
de julho de 2010, o então governador do Distrito Federal, Rogério Rosso,
assinou o contrato para a reforma e ampliação do Estádio Mané Garrincha para
receber jogos da Copa. A reforma, então prevista para custar R$ 696 milhões,
deu lugar à demolição do antigo estádio e à construção de uma nova arena cujo
valor atual estimado é de R$ 1,9 bilhão. Tudo na conta do contribuinte
distrital.
Em Cuiabá,
capital de Mato Grosso, Estado cujo campeonato regional deste ano teve média de
456 pagantes por jogo, o governo local definiu em 2009 não só que bancaria o
estádio da Copa, por evidente falta de interesse de investidores privados, mas
que também construiria a arena do zero.
Para tanto,
teria que demolir o Estádio José Fragelli, o Verdão. Assim, em março de 2010,
as empreiteiras Mendes Júnior e Santa Bárbara venceram a licitação para tocar a
obra, a um custo de R$ 342 milhões. Atualmente, a obra está orçada em R$ 570
milhões, e o governo do Estado estuda subsidiar os clubes locais para que o
Campeonato Mato-Grossense possa ser disputado na arena a partir de 2015.
Investimento público, lucro privado
Em cinco
das 12 cidades da Copa, as obras foram executadas no modelo de PPP (parceria
público-privada). São elas: Belo
Horizonte (Mineirão), Fortaleza (Castelão), Natal (Arena das Dunas), Recife
(Arena Pernambuco) e Salvador (Arena Fonte Nova).
Em todos casos,
excetuando o Mineirão, um novo estádio foi erguido do zero, sendo que em
Salvador, Natal e Fortaleza antigos estádios públicos que estavam em
funcionamento foram demolidos para darem lugar às novas arenas. Já em Recife,
apesar de existirem três clubes grandes na capital que possuem estádios de
porte, com projetos de reforma dos mesmos custeados pela iniciativa privada, o
Governo do Estado de Pernambuco achou por bem construir uma arena nova em
folha, a um custo inicial anunciado de R$ 491 milhões, mas com a conta até
agora beirando os R$ 700 milhões.
No geral,
as PPPs que foram criadas funcionam basicamente da mesma forma: o Estado
contrata e paga empreiteiras para fazer a obra. Depois de pronta, a arena passa
a ser administrada pela própria construtora, que fica com o direito de explorar
economicamente o equipamento por um determinado número de anos, e a obrigação
de cuidar da manutenção do estádio e dar a ele sua função social, ou seja,
realizar jogos e eventos.
Até aí,
este é um modelo de contratação entre Estado e iniciativa privada em diversos
países do mundo. Ele é acompanhado de um estudo de viabilidade. No edital e no
contrato de concessão, consta que o poder público estadual irá garantir ao
concessionário uma receita mínima orçamentária durante o período de validade do
contrato. Assim, o contrato diz: "De acordo com o estudo de viabilidade
constante no edital, espera-se que a operação do equipamento resulte em uma
receita anual de X. Caso a receita seja inferior a X, o governo estadual bancará
parte desta diferença ao concessionário''.
O problema
foram as receitas calculadas e esperadas nesses contratos, que tornam certo que
o poder público entra com o investimento e o poder privado fica com o lucro.
Em Recife,
por exemplo, o contrato estabelecido em
junho de 2010 previa uma projeção de receita para arena de R$ 73 milhões por
ano a ser obtida com a renda de, pelo menos, 20 jogos anuais de cada clube
grande de futebol da capital: Sport, Santa Cruz e Náutico.
Além desse
montante, o governo estadual também estava comprometido a pagar parcelas fixas
anuais de R$ 4 milhões à construtora e administradora do equipamento, a título
de contrapartida pela construção e manutenção do estádio, até 2043.
Com isso,
garantia-se uma receita total de R$ 2,3 bilhões à empreiteira Odebrecht com a
arena, apenas considerando as receitas vindas da contrapartida estadual (R$ 120
milhões) e da bilheteria das partidas dos clubes de Recife (R$ 2,19 bilhões).
No
contrato, o governo se comprometia a fazer com que os clubes jogassem na arena
nos próximos 30 anos, caso contrário ele mesmo arcaria com o prejuízo.
Pois bem, o
estádio foi entregue em dezembro de 2012. Dos três times que deveriam jogar
suas principais partidas lá nos próximos 30 anos, somente o Náutico – o de menor
torcida – assinou contrato com a
administradora do estádio.
Assim, o
governo pernambucano foi obrigado a rever seus compromissos, por meio de
aditivo ao contrato: "O Estado de Pernambuco reconhece a existência de
risco razoável de os três principais clubes de futebol pernambucanos não
formalizarem, de imediato, o compromisso firme de utilizarem a Arena Pernambuco
em suas 60 melhores partidas por ano, frustrando a condição de eficácia
prevista na cláusula 71.1, item II, do contrato''.
Ou seja,
caso o lucro da Odebrecht não seja o esperado nas próximas três décadas – e
certamente não será, visto que somente um terço dos jogos previstos de fato
acontecerão no estádio – quem vai pagar
a conta é o povo pernambucano. Modelos semelhantes de contrato foram assinados
em Belo Horizonte, Fortaleza, Natal e Salvador.
Já no Rio
de Janeiro, onde o governo estadual começou dizendo que gastaria R$ 700 milhões
para reformar o seu Maracanã e gastou mais de R$ 1 bilhão, o governador Sérgio
Cabral bem que tentou passar para a iniciativa privada a administração do
estádio depois de reformado, mas em virtude de ilicitudes detectadas no
processo, o Ministério Público Federal conseguiu barrar judicialmente a
operação.
Por fim,
restam os três estádios privados da Copa: Beira-Rio, do Internacional, Arena da
Baixada, do Atlético Paranaense, e Itaquerão, do Corinthians. Foram as únicas
três arenas da "Copa do dinheiro privado" prometida pelo governo
federal.
Ainda
assim, as três assinaram um empréstimo subsidiado de até R$ 400 milhões com o
BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Além disso, todas
receberam dinheiro público dos governos locais, por meio de créditos fiscais
negociáveis doados pela prefeitura (Arena da Baixada e Itaquerão) ou por
participação financeira pura e simples na obra (Beira-Rio, onde o Governo do
estado irá bancar os mais de R$ 30
milhões da instalação das estruturas provisórias).
Os centros de treinamento inúteis
E custo dos estádios que sai do bolso do contribuinte não se resume aos
locais de jogo. Há também os campos para treinos. E os 83 centros de
treinamento que tiveram de ser feitos para as seleções treinarem para o Mundial
vão custar, de acordo com o Ministério do Esporte, pelo menos R$ 233 milhões ao
governo federal.
Deste montante, R$ 149 milhões foram utilizados em locais que não serão
usados na Copa. Como apenas 32 equipes participam da competição e cada uma
escolhe um CT - estádios e campos de futebol no geral -, 51 locais de
treinamento ficaram fora da Copa, agora que todos os times já definiram onde
irão hospedar-se.
Exemplo: estádio Canarinho, em Boa Vista (Roraima). Recebeu R$ 100
milhões diretamente do Orçamento Geral da União para montar uma arena padrão
Fifa. O estádio não foi escolhido como campo de treino de ninguém. Estará,
quando ficar pronto, à disposição do futebol roraimense, cuja média de público
por jogo do torneio estadual não ultrapassa 100 torcedores.
Diante de tal quadro, tão diferente do
que foi vendido ao povo brasileiro quando o então presidente Luiz Inácio Lula
da Silva foi em busca da Copa, nos idos de 2007, o UOL Esporte perguntou
às autoridades federais o que teria acontecido para justificar a mudança
diametral de planos. A resposta veio da Secretaria-Geral da Presidência, que disse
à reportagem que o país tentou, mas não conseguiu atrair a iniciativa privada
para a realização dos investimentos necessários. De acordo com o ministro
Gilberto Carvalho, "nem sempre a realidade acontece como o previsto".
E ponto.
Vinícius
Segalla - Do UOL, em São Paulo 04/06/2014
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