sábado, 28 de junho de 2014

Da glória do Cruzado à solidão do Amapá


Depois dos bons tempos do poder, ex-presidente José Sarney sai de cena politicamente isolado.



Imperatriz, sul do Maranhão, 6 de abril de 1989. Cabisbaixo, o presidente José Sarney pega o microfone. No palanque improvisado no Clube Juçara ele inicia um discurso com seu mais tradicional bordão: “Brasileiras e brasileiros...”. Acrescenta: “... de Imperatriz e do Maranhão”. Diz que está emocionado e afirma que a Ferrovia Norte-Sul – cujos primeiros cento e poucos quilômetros seriam inaugurados naquele momento – não é de nenhum Estado. “É a ferrovia da integração nacional.”

E prossegue, desconfiado: “Nos 11 meses que ainda me restam nós vamos continuar. Se de alguma coisa me arrependo durante o meu governo é de não ter tido a audácia de resistir àqueles que resistiram à Norte-Sul. Mas, compensarei, sem dúvida, esta omissão, depois de deixar a Presidência, pois no dia em que parar a construção desta estrada, eu estarei ali presente, naquele lugar (aponta para os trilhos), esperando até o dia em que ela recomece a ser feita.” Depois que deixou a Presidência, em março de 1990, a obra foi interrompida várias vezes – até hoje não foi concluída. Nem por isso Sarney se sentou nos trilhos. Esse tipo de enfrentamento não faz parte de seu perfil.

No dia seguinte, Sarney tomou o trem de volta a São Luís. À medida que a composição avançava, ele ia se animando. Concedeu entrevistas em portunhol, disse que não trocaria a dívida externa do País por compensações ambientais e fez mais discursos em Açailândia e Santa Inês. Ali, diante do povo do Maranhão, ele parecia ganhar coragem e valentia, mas isso era em 1989. Com o tempo, esse mesmo Maranhão rejeitou Sarney.

Isolado no PMDB – que havia apoiado até uma CPI da Corrupção contra o governo federal – e pelo então governador maranhense Epitácio Cafeteira, e sabendo-se sem chances de ser eleito senador – um passo atrás para quem havia sido presidente da República e governador aos 35 anos –, só lhe restou mudar o domicílio eleitoral para o Amapá. E, pelo novo Estado, criado pela Constituinte que convocou, fez-se senador até hoje. Agora, 25 anos depois de ter deixado o Maranhão, e aos 84 de idade, com problemas de saúde, ele pressentiu de novo o risco de enfrentar uma eleição sem a certeza de vitória. Decidiu se aposentar.

Paralisações. Naqueles 11 meses que lhe restavam, em 1989, Sarney não tinha apoios no Congresso e via à sua volta uma sequência de greves – 8.790, segundo ele mesmo contou – que prejudicava tanto o setor privado quanto o estatal. A Assembleia Constituinte que convocara, um feito político tido como de coragem, que o levaria definitivamente para a democracia, tentara tirar dele dois anos de mandato. Teve de negociar muito para perder só um. Adversários o acusaram de distribuir concessões de emissoras de rádio e de TV em proveito próprio.

Tudo isso acontecia sob as vistas grossas do então deputado Ulysses Guimarães, que se empenhava em assegurar sua candidatura à Presidência pelo PMDB, justamente para suceder ao presidente acuado. Sarney julgava-se vítima de ingratidão tanto da parte de Ulysses – que mandara e desmandara no governo – quanto do PMDB. Três anos antes, por causa do Plano Cruzado que o presidente lançara no início de 1986, o partido havia se consagrado nas urnas, elegendo 22 dos 23 governadores. Ainda um fruto dos alegres dias dos “fiscais do Sarney”.

Faltando 11 meses para o fim do governo – e enquanto Sarney inaugurava os primeiros trechos da ferrovia Norte-Sul –, o País presenciava a intensa movimentação para a eleição do primeiro presidente depois do golpe militar. O grande vitorioso foi Fernando Collor de Mello, com o discurso de “caçador de marajás”, e que na campanha havia atacado Sarney de forma violenta.

Lula. Negociador por natureza, assim que Sarney chegou ao Planalto o clima mudou – ficava para trás o tempo dos generais e a liberdade de informação se espalhava por toda parte. Conciliador, aproximou-se de Luiz Inácio Lula da Silva, que tanto o atacara e fora um crítico ferrenho da Norte-Sul, e de Epitácio Cafeteira (PTB), que lhe fechou as portas no Maranhão e o empurrou para o distante Amapá.
Mas, como afirmam assessores e políticos que lhe foram próximos, ele nunca foi santo.

Sarney apoiou, por exemplo, a censura imposta ao Estado pela Justiça de Brasília, a pedido de seu filho Fernando – caso que o Judiciário está por resolver há 1.734 dias. Também não perdoou o escritor Millôr Fernandes, que fez duras críticas ao livro Brejal dos Guajas, lançado por Sarney quando era presidente. Para Millôr, era “uma obra-prima sem similar na literatura”, pois “só um gênio poderia fazer um livro errado da primeira à última frase”. Quando Millôr morreu, em 2012, intelectuais do País inteiro lhe fizeram homenagens. Sarney não apareceu.

JOÃO DOMINGOS/BRASÍLIA - O ESTADO DE S. PAULO


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...