Estadão,
26/06/2014 - José Serra
O PT não é
um partido muito tolerante já a partir de seus próprios pressupostos originais
e de seu nome: quem se pretende um partido “dos” trabalhadores, não “de”
trabalhadores, já ambiciona de saída a condição de monopolista de um setor da
sociedade. Mais ainda: reivindica o poder de determinar quem pertence, ou não,
a essa categoria em particular. Assim, um operário que não vota no PT, por
exemplo, não estará, pois, entre “os” trabalhadores; do mesmo modo, o partido
tem conferido a “carteirinha” de operário padrão a pessoas que jamais ganharam
o sustento com o fruto do próprio trabalho.
A fórmula
petista é conhecida: a máquina partidária suja ou lava reputações a depender de
suas necessidades objetivas. Os chamados bandidos de ontem podem ser
convertidos à condição de heróis e um herói do passado pode passar a ser
tratado como bandido. A única condição para ganhar a bênção é estabelecer com o
ente partidário uma relação de subordinação. A partir daí não há limites. Foi
assim que o PT promoveu o casamento perverso do patrimonialismo “aggiornado”,
traduzido pela elite sindical, com o patrimonialismo tradicional, de velha
extração.
Afirmei no
final de 2003 o que nem todos compreenderam bem, que o petismo era o
“bolchevismo sem utopia”. Aproxima-se do bolchevismo nos métodos, no propósito
de tentar se estabelecer, se possível, como partido único; nas instâncias
decisórias aproxima-se do chamado “centralismo democrático”, que nada mais é do
que a ditadura da direção central do partido. É bolchevista também na certeza
de que determinadas ações até podem ser ruins para o Brasil, mas serão
implementadas se parecerem boas para o partido. Como se considera que é ele que
conduz a História do Brasil, não contrário, tem-se por certo que o que é bom
para o partido será, no longo prazo, bom para o País e para o povo. Nesse
sentido particular os petistas ainda são bastante leninistas.
Quando
afirmei que lhes faltava a dimensão utópica, não estava emprestando um valor
necessariamente positivo a essa utopia. Na minha ação política miro a terra que
há, não a Terra do Nunca. E nela procuro sempre ampliar aquilo que é percebido
como os limites do possível. De todo modo, é inegável que o bolchevismo tinha
um devir, uma prefiguração, um sonho de um outro amanhã, ainda que isso tenha
desembocado na tragédia e no horror stalinista. Mas isso não muda a crença
genuína de muitos que se entregaram àquela luta. Isso o PT não tem. E chega a
ser piada afirmar que o partido, de alguma maneira e em alguma dimensão, no que
concerne à economia é socialista ou mesmo de esquerda. Muitas correntes de
esquerda são autoritárias, mas convém não confundir o autoritarismo petista com
socialismo. O socialismo tem sido só a fachada que o PT utiliza para lavar o
seu autoritarismo – associado, infelizmente, a uma grande inépcia para
governar, de que tenho tratado sempre nesta página.
Quero
chamar a atenção é para o recrudescimento da face intolerante do partido. Como
também já abordei aqui, vivemos o fim de um ciclo, que faz cruzar,
episodicamente, a História do Brasil e a do PT. As circunstâncias que
permitiram ao petismo sustentar o modelo que aí está – que nunca foi “de
desenvolvimento”, mas de administração oportunista de fatores que não eram de
sua escolha – se esgotaram. Na, infelizmente, longa agonia desse fim de ciclo
temos a economia semiestagnada, os baixos investimentos e a
desindustrialização, os déficits do balanço de pagamentos em alta e a inflação
reprimida. E, nota-se, o partido nada tem a oferecer a não ser a pregação
terrorista de que qualquer mudança implicará desgraça nacional.
Não tendo
mais auroras a oferecer, não sabendo por que governa nem por que pretende
governar o País por mais quatro anos, e percebendo que amplos setores da
sociedade desconfiam dessa eterna e falsa luta do “nós” contra “eles”, o
petismo começa a adentrar terrenos perigosos. Se a prática não chega a ameaçar
a democracia – tomara que não! –, é certo que gera turbulências na trajetória
do País. No apagar das luzes deste mandato, a presidente Dilma Rousseff decide
regulamentar, por decreto – quando poderia fazê-lo por projeto de lei –, os
“conselhos populares”. Não por acaso, bane o Congresso do debate,
verticalizando essa participação, num claro mecanismo de substituição da
democracia representativa pela democracia direta. Na Constituição elas são
complementares, não excludentes. Por incrível que pareça – mas sempre afinado
com o bolchevismo sem utopia –, o modelo previsto no Decreto 8.243 procura
substituir a democracia dos milhões pela democracia dos poucos milhares – quase
sempre atrelados ao partido. É como se o PT pretendesse tomar o lugar da
sociedade.
Ainda mais
detestável: o partido não se inibe de criar uma lista negra de jornalistas – na
primeira fornada estão Arnaldo Jabor, Augusto Nunes, Reinaldo Azevedo, Diogo
Mainardi, Guilherme Fiuza, Danilo Gentili, Marcelo Madureira, Demétrio Magnoli
e Lobão –, satanizando-os e, evidentemente, expondo-os a riscos. É
desnecessário dizer que tenho diferenças, às vezes severas, com vários deles.
Isso é parte do jogo. É evidente que o regime democrático não comporta listas
negras, sejam feitas pelo Estado, por partidos ou por entidades. Mormente
porque, por mais que se possa discordar do ponto de vista de cada um, em que
momento eles ameaçaram a democracia? Igualmente falsa – porque há evidência dos
fatos – é que sejam tucanos ou “de oposição”. Não são. Mas, e se fossem? Num
país livre não se faz esse tipo de questionamento.
Acuado
pelos fatos, com receio de perder a eleição, sem oferecer uma resposta para os
graves desafios postos no presente e inexoravelmente contratados para o futuro,
o PT resolveu acionar a tecla da intolerância para tentar resolver tudo no
grito. Cumpre aos defensores da democracia contrariar essa prática e essa
perspectiva. Não foi assim que construímos um regime de liberdades públicas no
Brasil. O PT está perdendo o eixo e tende a voltar à sua própria natureza.
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