Eles não estão sós: são uma superfície emersa, ainda que mascarada, da profunda crise na qual se debate a esquerda brasileira. |
A indagação
refere-se aos black blocs e revela as evidentes dificuldades da professora com
o raciocínio lógico, que são multiplicadas por uma dramática carência de
referências históricas. Contudo, atrás dela, é possível identificar os
contornos de um fenômeno relevante: Os “40 garotos” não estão sós: são uma
superfície emersa, ainda que mascarada, da profunda crise na qual se debate a
esquerda brasileira.
A violência
que se espraia, oriunda de bandidos ou policiais-bandidos, obviamente não pode
servir como justificativa para a colonização de manifestações políticas por
grupos dedicados à violência. No plano lógico, há mais: a violência dos “40
garotos” não é uma resposta à criminalidade, mas uma apropriação política dos
métodos dos criminosos.
A
declaração de um dos líderes dos black blocs, reproduzida na reportagem,
evidencia uma deriva perigosa, mas bastante previsível:
“Não temos
aliança nem somos contra o Primeiro Comando da Capital (PCC). Só que eles têm
poder de fogo muito maior que o Movimento Passe Livre (MPL). Eles fazem por
lucro e a gente, contra o sistema.” Solano não vê nisso nenhum problema – e o
problema é justamente esse.
Os “40
garotos” não são um raio no céu claro – nem, muito menos, como sugeriram alguns
intelectuais hipnotizados pela política da violência, um fruto natural da vida
nas “periferias”. As táticas que utilizam, a estética que os define e as ideias
que os mobilizam têm significados inteligíveis. Como tantos outros
intelectuais-militantes, Solano provavelmente sabe decifrá-los, mas prefere
ocultá-los.
A estética
tem importância. Os “40 garotos” cobrem o rosto não apenas para praticar atos
criminosos no anonimato, mas, essencialmente, com a finalidade de traçar uma
fronteira entre eles mesmos e os demais manifestantes. Os black blocs enxergam
a si próprios como uma vanguarda, um modelo e um exemplo. Eles sabem o que os
outros (ainda) não sabem.
“Estamos
mostrando na rua a tática, e queremos que as pessoas se apropriem”, explicou
uma black bloc, estudante de Ciências Sociais. Nesse sentido preciso (e só
nesse!), os black blocs inscrevem-se na correnteza histórica dos grupos
terroristas e das organizações de guerrilha urbana.
As táticas
têm importância. Os “40 garotos” atacam policiais, depredam e vandalizam com a
finalidade de provocar a reação repressiva mais violenta possível. No cenário
ideal, policiais despreparados e assustados devem investir contra manifestantes
pacíficos, ferindo-os ou (sonho dourado!) matando-os.
Os black
blocs são descendentes das organizações de “ação direta” que emergiram na
Alemanha e na Itália entre as décadas de 1970 e 1980. “A manifestação não pode
ser pacífica, sendo que é resposta à repressão estatal e capitalista”, teorizou
um dos “40 garotos”. Os black blocs almejam promover o caos para comprovar a
tese política que abraçaram.
As ideias
têm importância. Os “40 garotos” inspiram-se no filósofo Herbert Marcuse, que
interpretava as democracias representativas como regimes autoritários
disfarçados sob uma película irrelevante de falsas liberdades. A rejeição
marcusiana às instituições da “falsa democracia” funcionou como mola das
organizações de “ação direta” que emergiram no rescaldo do Maio de 1968 na
Europa.
Dos
destroços da “ação direta”, surgiram grupos terroristas como o Baader-Meinhof e
as Brigadas Vermelhas. Os ancestrais dos black blocs eram “garotos” alemães e
italianos cujas vidas – e as de tantos outros da mesma geração não envolvidos
em atos de terror – foram tragadas no caldo letal das ideias formuladas por
intelectuais-militantes.
A
professora da Unifesp só tem relevância como sintoma. Na hora da repressão, ela
estará defendendo sua tese acadêmica ultrarradical numa sala climatizada, entre
pares ideológicos. Mas as bobagens rasas que diz e escreve descortinam um
panorama trágico: uma parte da esquerda brasileira não aprendeu nada e ensaia
reproduzir experiências catastróficas bem conhecidas.
Infelizmente,
os “40 garotos” não estão sós. A conversão do PT em “partido da ordem” – e, em
seguida, da “velha ordem” – abriu um vazio político que começa a ser preenchido
pelo discurso e pela prática da “contraviolência”.
O MPL
jamais condenou as intervenções dos black blocs nas passeatas que convocaram.
Setores do PSOL piscaram um olho para eles, como se viu tanto na greve dos
professores municipais quanto na ocupação da Câmara Municipal do Rio de
Janeiro.
“Um país
que naturaliza tanto a sua violência não tolera ver a violência na Avenida
Paulista”, disse Solano ao repórter. “É legítimo quebrar banco. Quantas pessoas
um banco quebra por dia?”, explicou o líder black bloc, que também justificou a
depredação de bens públicos:
“O imposto
já é roubado. Dizer que o dinheiro vai sair do nosso bolso é mentira, porque já
saiu. Alguém tem saúde digna? Então não reclame de vandalismo.”
Marcuse
depositava suas esperanças revolucionárias no que os marxistas caracterizaram
como “lumpen-proletariado”, isto é, a camada marginalizada de desempregados
crônicos, jovens revoltados, pequenos criminosos, vigaristas e desordeiros dos
centros urbanos. Seguindo a trilha do mestre, os intelectuais-black blocs
enxergam nos “40 garotos” a centelha de uma grande fogueira purificadora.
De fato, os
“40 garotos” expulsaram as pessoas comuns das ruas, transformando-as em
cenários de pequenas guerras urbanas. O espectro da violência serve, hoje, como
argumento para a militarização das cidades-sede da Copa. Solano já pode
comemorar: os seus “garotos” estão “provando” a tese de que democracia é igual
a ditadura.
Demétrio
Magnoli - O Globo - 5/6/2014
A nosso ver os black-blocs sao bem menos perigosos que nossos politicos. Enquanto estes destroem o bem publico de forma ostensiva, aqueles destroem e saqueiam o bem publico na surdina e assim nunca saberemos realmente o tamanho do estrago que estao fazendo...JL
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