O volume de
empréstimos do Tesouro a bancos públicos aumentou cerca de vinte vezes desde
2007, passando de 0,5% para mais de 9% do PIB.
Alguns
analistas repetem o refrão: vistos em conjunto os governos Itamar
Franco/Fernando Henrique e Lula/Dilma serão percebidos no futuro como uma
continuidade. Houve a estabilização da economia, as políticas sociais foram
ativadas e, a democracia, mantida. Sim e não, digo eu. É certo que, no primeiro
mandato de Lula, as políticas macroeconômicas foram sustentadas pelo chamado
“tripé” (Lei de Responsabilidade Fiscal, metas para a inflação e câmbio
flutuante) e que a crise de 2008 foi razoavelmente bem manejada. Mas depois o
governo lulista sentiu-se à vontade para levar adiante o sonho de alguns de
seus membros.
A, então
poderosa, ministra-chefe da Casa Civil se opôs desde logo aos economistas,
inclusive do governo, que propunham limitar a expansão do gasto público ao
crescimento do PIB. Na área fiscal, só fizemos piorar. Ao mesmo tempo, pouco se
fez para sanear a máquina pública, infiltrada por militantes e operadores
financeiros, e estancar a generalização do dá cá (apoio ao governo e votos),
toma lá (nomeações para ministérios, empresas públicas e áreas
administrativas). O governo alardeia estar cumprindo as metas de superávit
primário, quer dizer, o resultado das contas públicas antes do pagamento dos
juros da dívida.
Cumprir essas metas é essencial para assegurar a queda da
dívida como proporção do PIB. Desde 2009, o governo vem se valendo de
expedientes para “cumpri-las”, às vezes mediante fabricação de receitas por
contabilidade criativa, como em 2012, ora com uso de receitas extraordinárias,
como em 2014, quase sempre com o adiamento de despesas que vão engordando os
chamados restos a pagar.
Afirma o
governo que o superávit de 2014 será igual do ano anterior. Será? Custo a crer,
pois o superávit de 2013 computou o resultado do leilão da concessão de
exploração de petróleo no poço de Libra (R$ 15 bilhões) e a antecipação
incentivada à Receita de R$ 22 bilhões devidos por empresas. Somados esses
recursos geraram R$ 37 bilhões, ou 0,8% do PIB, quase a metade do superávit
primário do ano passado (1,9%). De onde virão as receitas extraordinárias em
2014? Fará o governo leilões do pré-sal usando a “amaldiçoada” lei anterior que
não exige capitalização da Petrobras e antecipa maiores recursos ao Tesouro?
Seria a suprema ironia.
A única
certeza é a de que a expansão do gasto público é crescente: em janeiro do ano
em curso (mês no qual em geral as despesas caem com relação a dezembro do ano
anterior) houve uma expansão de R$ 4 bilhões. Ou seja, o que não foi pago em
dezembro de 2013 será pago no ano em curso. Se tivesse sido pago, o superávit
de 2013 teria sido de apenas 1%, dos quais 0,8% proveniente de receitas
extraordinárias!
A tendência à expansão do gasto vem de longe. E se acentuou no
governo de Dilma. Em 2013, a despesa atingiu 19% do PIB (era de 11% em 1990). O
crescimento do gasto como proporção do PIB nesses últimos três anos foi mais de
duas vezes superior ao observado em meu segundo governo, quando se instituiu o
regime de metas de inflação e responsabilidade fiscal, com metas de superávit
primário e controle do gasto público.
O governo atual alega que a dívida
líquida não cresceu nesse período e que a dívida bruta, embora tenha aumentado,
estaria sob controle. É fato que, como proporção do PIB, a dívida líquida não
cresceu e que a bruta, em comparação com a de alguns países desenvolvidos,
aparentemente não deveria nos preocupar. Seria verdade, não fosse pelo
“detalhe” de que o custo da nossa dívida é muito maior. Basta um exemplo: no
ano passado, com uma dívida bruta de 66% (segundo o FMI) ou um pouco menos de
60% (segundo o governo), o Brasil gastou 5,2% do PIB com juros da dívida. Já a
arruinada Grécia, com uma dívida bruta de mais de 170% do PIB, gastou 4%!
O não
crescimento da dívida líquida se deve, em boa medida, mais uma vez, a um truque
fiscal. Ele consiste em fazer o Tesouro tomar dinheiro emprestado no mercado,
mais de R$ 300 bilhões desde 2009, e repassar o dinheiro ao BNDES. Na
contabilidade da dívida líquida, uma operação anula a outra, pois a dívida
contraída com o setor privado pelo Tesouro se transforma em crédito do mesmo
Tesouro contra o BNDES, que é 100% controlado pelo governo.
Ocorre que os juros
que incidem sobre a dívida contraída com o mercado são muito mais altos do que
os juros cobrados pelos empréstimos do BNDES, para não falar no risco de parte
desses empréstimos não ser paga jamais. O Tesouro deveria compensar o BNDES por
esta benevolência, mas não o vem fazendo. Ao final de 2013, já eram R$ 17 bilhões
devidos pelo Tesouro ao BNDES para equalizar a diferença nas taxas de juros. Os
empréstimos do Tesouro ao BNDES não são um caso isolado.
Dados do economista
Mansueto Almeida mostram que o volume de empréstimos do Tesouro a bancos
públicos aumentou cerca de vinte vezes desde 2007, passando de 0,5%, para mais
de 9% do PIB! Vamos, de truque em truque, em marcha firme para a produção do
que, no passado, chamávamos de “esqueletos” ou dívidas não reconhecidas.
Tudo isso
foi feito com a justificativa de que era necessário para estimular a economia.
Porém, em lugar de mais investimento e mais crescimento, colhemos apenas mais
inflação e maior fragilidade fiscal.
Como o
lulopetismo sabe que é difícil enganar sempre, tenta agora desacreditar os
adversários. Alardeia que diante desse quadro, se o PSDB e as oposições
ganharem, vão tratar os consumidores e o povo a pão e água. Puro desvario. O
controle sobre o desarranjo fiscal e a inflação não precisa recair sobre o
povo. As bolsas consomem apenas 0,5% do PIB. Fizemos a estabilização da moeda,
controlamos gastos do governo e, ao mesmo tempo, aumentamos o salário mínimo,
realizamos a reforma agrária, universalizamos o ensino fundamental,
fortalecemos o SUS e introduzimos programas de combate à pobreza.
Está na
hora de pôr ordem na casa, e o governo nas mãos de quem sabe governar.
Fernando Henrique Cardoso - O Globo - 1/6/2014
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