Num de seus
recentes discursos, Dilma Rousseff afirmou que as obras para a Copa terão
padrão brasileiro, não padrão Fifa. Com essa frase queria dizer também que
nossos padrões são mais democráticos, naturalmente referindo-se aos altos
preços dos ingressos. Dilma fez tal declaração no fim de um período em que a
Copa do Mundo foi perdida fora do campo e todos esperamos, ela com ansiedade
singular, que seja ganha dentro do campo.
Essa frase
de Dilma marca uma inflexão do governo nas suas relações com a Fifa, cujos
dirigentes afirmam que o Brasil propunha a Copa em 17, e não 12 cidades. Foi
preciso conter a megalomania de Lula e a própria Fifa foi otimista quando
considerou 12 um bom número, levando em conta o tamanho do Pais, não suas reais
possibilidades.
O Estádio
Mané Garrincha, beirando o R$ 1,5 bilhão, custou mais caro que um estádio do
Qatar – país com a maior renda per capita do mundo – para 2022. Se os cálculos
forem comprovados, o padrão brasileiro foi mais caro, no Mané Garrincha, do que
o padrão Fifa sonharia. O estádio de Brasília é um monumento. Não sabemos ainda
se é um monumento à incompetência ou à roubalheira, embora no padrão brasileiro
os dois joguem no mesmo time, bem perto do gol.
Três
estádios foram plantados em cidades cujo futebol não atrai multidões. O velho
estádio de Natal só conseguiu lotação plena quando o papa visitou a cidade.
Para o novo estádio teremos de combinar com o papa Francisco algumas visitas
regulares, algo difícil porque um papa não faz visitas apenas para cumprir tabela.
Em Cuiabá
presenciamos um fato inédito na história: no dia da visita de inspeção da Fifa,
o governador e o presidente da Assembleia estavam presos. É a Copa das Copas,
ou o mico dos micos, como quiserem.
Em Manaus,
na imensidão um estádio vazio, uma arena amazônica que me deixa perplexo,
sobretudo quando vejo o que vi na Vila de Boim, a seis horas de barco de
Santarém: o esforço das comunidades para jogarem a sua própria Copa, numa
região da floresta para a qual não existe política de esporte.
Lula quis
dar salto maior que as pernas e agora que o fracasso se revela resta apenas
ironizar o padrão Fifa que se comprometeu a adotar.
A esquerda
não tem o monopólio da duplicidade e da dissimulação. Mas num partido como o PT
e, sobretudo, num governo ditatorial como o cubano, são os dois elementos
vitais para sobreviver e crescer. Em O Homem que Amava os Cachorros, Leonardo
Padura fala de uma família cubana, possivelmente a do próprio escritor, que
ensinou aos filhos exatamente o oposto dessa regra da sobrevivência: falar a
verdade, ser fiel a si próprio.
O discurso
do governo brasileiro em relação à Copa é de um zigue-zague acrobático, uma
tentativa desesperada de abordar os fatos de frente e cair na realidade. Não
foi uma ideia feliz trazer a Copa para o Brasil e assumir os compromissos que
assumiu com a Fifa.
Isso não
significa que a Copa não deva ocorrer, muito menos que deixamos de torcer pela
vitória dentro do campo. Significa apenas que a linguagem cínica do governo é
uma fonte permanente de degradação da vida política. Reflete uma lei interna
segundo a qual não é preciso dizer o que pensa, regra válida para todos os que
aderem. Basta que façam o jogo, dancem de acordo com a música.
Até que
ponto o cinismo triunfará amplamente numa sociedade democrática é o enigma que
envolve o futuro próximo do Brasil. Controlar o aparato estatal, o Parlamento e
até o Supremo Tribunal ainda é um cobertor curto. Restam a sociedade, a
imprensa, a internet.
Os
militares compreenderam que não tinham resposta para o futuro e organizaram a
retirada para não baterem em fuga desordenada, arriscando a instituição. O PT
não acumulou forças para encarar a verdade, arriscar o poder e preservar-se
para o futuro.
O discurso
de Dilma não é voltado para a frente. Apenas adverte que a vitória da oposição
significará um ajuste que vai reduzir salários, aumentar o desemprego e cortar
verbas sociais. Embora não reconheça, ela deve saber que é necessário um
ajuste, que pode ser moderado, no sentido que lhe dá Amartya Sen. Quer dizer,
não precisa reduzir salários nem cortar verbas sociais. Um ajuste desse tipo
seria voltado para os gastos irracionais do governo. Mas bateria de frente com
o mundo político e burocrático, toda essa gente agarrada a cargos, verbas,
negociatas. Às vezes, quando falamos em defender o salário do povo, estamos
defendendo os nossos próprios salários. E reaparecem aí a duplicidade e a
dissimulação.
Dotar o
Brasil de um governo inteligente, aberto e conectado, transformar um sistema
político que se tornou uma gigantesca sanguessuga não figuram no seu horizonte.
O único caminho é usar os interesses populares como escudo para os seus
próprios interesses e agarrar-se ao poder.
Na
classificação de presidentes de toda a República no quesito crescimento, Dilma
está em penúltimo e Fernando Collor em antepenúltimo lugar, atrás de Floriano
Peixoto, portanto, entre os quatro de baixo que vão para a Segundona. Ao
afirmar que as dificuldades econômicas foram conjunturais, ela pede uma segunda
chance. Mas pede como se estivesse no grupo de cima, preparando-se para a
Libertadores.
Como dizia
Cazuza, suas palavras não correspondem aos fatos, sua piscina está cheia de
ratos. Aceitar que suas palavras não correspondem aos fatos e limpar a piscina
política e administrativa dos seus ratos é uma tarefa gigantesca. O caminho
mais fácil é controlar o Estado, o Parlamento o Supremo, mobilizar uma
artilharia eletrônica.
Que venham
todos, porque, independentemente de resultados eleitorais, há um imenso número
de brasileiros sabendo o que há por trás dessa duplicidade e dissimulação.
Gente que gostaria de falar sério sobre nossos problemas, e não perder a
energia desmontando as bravatas de Lula, como essa da Copa. Perdemos tempo,
dinheiro, operários, moradias, irresponsabilidade que nem a vitória no campo
conseguirá apagar.
O Estado de
S. Paulo – 06/06/2014
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